segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O Feijão Mágico

Autor: Dennis Zagha Bluwol

Uma vez recebi uma estranha carta não assinada. Dizia que havia se afeiçoado muito por opiniões minhas publicadas em certo texto, onde expunha minha visão à favor da libertação dos animais das mãos de seus carrascos humanos. Dizia que não podia dizer por carta, mas havia um porquê muito profundo neste interesse em minha pessoa. Combinamos um encontro em um famoso parque de São Paulo.
Pequeno, com uma longa barbicha e ar bem simpático, apresentou-se como “o Gênio”. Contou-me sobre sua história de vida. Havia também vivido uma vida de clausura graças à humana sede de poder. Viveu por centenas de anos confinado em uma espécie de lamparina, sendo-lhe permitida a saída apenas para realizar desejos daqueles que a possuíram. Pedidos mesquinhos, invariavelmente, como era de se esperar.
Não me contou sobre como escapou desta condição, mas hoje vive livre, sem sair de sua pequena chácara nos arredores da cidade.
Enfim, viramos grandes amigos. Nossas conversas acerca da liberdade e da maldade humana viravam noites, regadas por inacreditáveis chás do oriente.
Após meses de amizade e convivência assídua, percebeu o Gênio que era eu um grande apreciador de feijões e leguminosas similares. Creio que, por ser brasileiro, parte de meus genes são constituídos de arroz e feijão, possivelmente interligados por finas fatias de couve e envoltos por uma grossa camada de pimenta e farinha de mandioca, mostrando, mais uma vez, o processo de adaptação entre códigos genéticos e ambientes. Mais um ponto para os Neo-Darwinistas. Como anarquista não respeito o Estado nacional, mas respeito muito um bom arroz com feijão.
Um dia, estava eu em casa almoçando quando de repente avistei um belo feijão multicolorido. A primeira impressão foi de surpresa, a segunda de medo, a terceira de gozo estético, a quarta de surpresa novamente, a quinta de emoção e a sexta de dúvida. Algo nele me chamava à mordida. Muitas cores se revezavam em um impressionante degrade. Muitos tons pareciam a todo instante se revezar. Algo em mim me levou a devorá-lo. E algo bateu.
De repente, não me perguntem como, estava em um sítio. E meu amigo Gênio estava lá. Havia me concedido a realização de um desejo. Porém, diferentemente de seus métodos da época em que era escravo, não me deixou escolher ao meu bel prazer. Achou ele mesmo nas entranhas de meus confusos neurônios algo que seria de fundamental importância para minha existência. Disse-me para relaxar e aproveitar a viagem. Achei que seu olhar tinha um quê de Timothy Leary e embarquei na onda.
Acordei em outro lugar. Um pasto. Sentado de frente para uma vaca. E a vaca olhava pra mim atenciosamente. Retribuí o gesto e olhei-a nos olhos. Havia algo de diferente naqueles olhos. Senti-me como certo aluno de certo professor-gorila. Após minutos de olhares profundos, parecia que criáramos certa intimidade. Passei a ouvir uma voz. Um canto. Uma voz feminina cantando palavras que conhecia em uma melodia que também conhecia. Para minha surpresa, a vaca deu-me uma piscadinha, como que confirmando que eu não estava ficando louco, ou talvez provando que o estava completamente. Estava realmente ouvindo o que se passava na mente daquela adorável criatura?
E eu continuava a ouvir:

I ain't gonna work on Maggie's farm no more.
No, I ain't gonna work on Maggie's farm no more.
Well, I try my best
To be just like I am,
But everybody wants you
To be just like them.
They sing while you slave and I just get bored.
I ain't gonna work on Maggie's farm no more.

Parece que possuíamos algo em comum além do fato de adorar comer folhas. Era uma fã do Dylan. Mas havia ainda algo mais naquele canto, que o fazia soar como uma work song de escravos catadores de algodão do delta do Mississipi, ou como os blues cantados por seus - ainda na miséria - descendentes. Olhei para o lado e vi a placa:

FAZENDA MAGGIE & FILHOS
– DA NATUREZA PARA SUA CASA –
LEITE DE VACAS FELIZES

Senti algo que nunca sentira antes, e pus-me a cantarolar com minha nova amiga, sentindo sua dor e ânsia de liberdade. Uma voz cantava How many years can some people exist, before they're allowed to be free? Mas outra entoava How many years can some animals exist, before they're allowed to be free?
Antes da primeira gota de lágrima, estava novamente em casa, defronte ao prato de comida. Triste, profundamente triste por saber que minha companheira de sentimento e gosto musical estava ainda em seu cárcere em algum lugar do mundo. Mas, ao mesmo tempo, feliz por olhar para meu prato, um manifesto anti-crueldade.
The times are a-changing? Eu não sei, mas incessantemente me questiono acerca daqueles que ainda alimentam-se do sofrimento alheio: how many ears must one man have, before he can hear animals cry? Se você, caro leitor, sabe que something is happening here, but you don't know what it is, the answer, my friend, is blowing in the wind. The answer is blowing in the wind.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Vozes Vegetarianas na Literatura: Romain Rolland


Uma das vozes vegetarianas mais fortes na literatura é a do escritor francês Romain Rolland (1866-1944), vencedor do Prêmio Nobel de Literatura.

Rolland doutorou-se em Arte em 1895, foi professor de História da Arte na École Normale de Paris e professor de História da Música na Sorbonne. Para além da sua atividade docente, foi um reconhecido crítico de música. Estreou na escrita em 1897 com a peça "Saint-Louis", que, juntamente com "Aërt" (1898) e "Le Triomphe de la Raison" (1899), fez parte da trilogia "Les Tragedies de la Foi" (1909). Em 1910 retirou-se do ensino para se dedicar inteiramente à escrita.

Na sua obra, concilia o idealismo patriótico com um internacionalismo humanista. Escreveu peças de teatro, biografias ("Vie de Beethoven", 1903; "Mahatma Gandhi", 1924), um manifesto pacifista ("Au-dessus de la mêlée", 1915) e dois ciclos romanescos: "Jean-Christophe" e "L'Âme enchantée".

O importante romance em dez volumes de Rolland, "Jean-Cristophe", conta a história de um músico e compositor que se afasta do mundo e reflete sobre os seus muitos males. Não é um romance cômico. Está cheio até a borda daquilo que Rolland acredita ser a pior tragédia do mundo: a chacina de animais para comer. Escreve Rolland:

Com toda veemência de sua (...) natureza, [Cristophe] sondou as profundezas da tragédia do universo: ele sofria todo o sofrimento do mundo e ficara, ensangüentado, em carne viva. Olhava os olhos dos bichos e via uma alma como a sua, uma alma que não sabia falar; mas os olhos gritavam por ela:
O que te fiz? Por que me feres?
Ele não suportava ver as coisas mais ordinárias que vira centenas de vezes – um bezerro chorando num cercado, com olhos grandes e esbugalhados, de branco azulado e pálpebras rosadas, e pestanas brancas, os tufos de pêlo branco e encaracolado na testa, o focinho arroxeado, as pernas ainda trêmulas; – um cordeirinho sendo carregado por um camponês com as quatro patas amarradas, de cabeça para baixo, tentando manter a cabeça levantada, gemendo como uma criança, balindo e esticando a língua cinzenta; – aves amontoadas num cesto; – os guinchos distantes de um porco sendo sangrado; – um peixe a ser limpo na mesa da cozinha... As torturas inomináveis que os homens infligem a estas criaturas inocentes faziam doer o seu coração. Concedei aos animais um vislumbre de razão, imaginai que pesadelo apavorante é, para eles, o mundo: um sonho de homens de sangue-frio, cegos e surdos, que lhes cortam a garganta, abrem-lhes o peito, evisceram-nos, cortam-nos em pedaços, cozinham-nos vivos, às vezes rindo-se deles e de suas contorções enquanto padecem em agonia. Há coisa mais atroz entre os canibais (...)? Para um homem cuja mente é livre há algo de mais intolerável no sofrimento dos animais do que no sofrimento dos homens. Afinal, no caso destes últimos, pelo menos se admite que o sofrimento é cruel e que o homem que o causa é um criminoso. Mas milhares de animais são abatidos inutilmente todos os dias sem sombra de remorso. Se algum homem se referisse a isso, seria considerado ridículo – e este é um crime imperdoável. Esta, sozinha, é a justificativa de tudo o que os homens sofrem. Exige a vingança de Deus. Se existe um Deus bom, então até a mais humilde das coisas vivas deveria ser salva. Se Deus é bom somente com os fortes, se não há justiça para os fracos e inferiores, para as pobres criaturas que são oferecidas em sacrifício à humanidade, então não existe esta tal bondade, esta tal justiça...

Palavras contundentes, que até hoje apelam à nossa sensibilidade.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A triste história do pequeno Linguiça de Vitela

São simples, mas eu adoro estes versos!
Abraços!

(Daniel Kirjner)

Fecundou
a mão humana o sexo,
em esturpo assistido.

Gestou
por nove meses, a escrava
do leite que é vendido.

Nasceu
por entre vidas em série,
condenadas ao deszelo.

Comeu,
sem sugar seio de mãe,
o anêmico Vitelo.

Engordou
forçadamente entupido
de líquido amido.

Viveu
preso em fétido cárcere,
nem longo, nem comprido.

Moveu
tão pouco as frágeis juntas
que seu corpo amoleceu.

Chorou
a falta de amor no rosto
distorcido pelo breu.

Persisitiu
sofrendo vários meses
de tortura, o bebê.

Existiu
por entre penas duras,
e esqueceu de adormecer.

Morreu
fendido pela lâmina sangrada,
do carrasco de ofício.

Esfolou,
sem dó, seu corpo,
a mão febril do genocídio.

Pesou
aquele cádaver infantil
o executor pecuarista.

Vendeu
a vida a preço barato,
em usura atacadista.

Correu
estradas o caminhão,
refrigerado pela morte.

Chegou,
enfim, na capital,
aquele triste e vil transporte.

Pendurou
seu corpo inerte
entre ganchos, o açogueiro.

Entregou
a um cozinheiro
por migalhas de dinheiro.

Cozinhou
o pequeno corpo,
assassinado em sofrimento.

Serviu
a alguns humanos
em dia de casamento.

Aconteceu
que não foi este
o único fim de sua morte.

Partilhou
com vários corpos
o ardil de outra sorte.

Condensou
o fabricante de lingüiça
todo mal.

Serviu
como iguaria
em um bar medieval.

Houve
jamais quem nomeasse,
quando vivia, tal bezerro.

Fez
o Homem de um prato de comida
seu enterro.

Transformou,
sem piedade, os pequenos
em estrela.

Devorou
restos de meninos,
ou Linguiça de Vitela.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A Dualidade da Relação Homem-Animais (Também) na Literatura


Muitas questões básicas têm ecoado nas mentes humanas desde que o primeiro homo sapiens pisou sobre a Terra e, portanto, são temas frequentes na literatura: a inexorabilidade da passagem do tempo, a imprevisibilidade da morte, o enlevo proporcionado pelo enlace amoroso, a veleidade das relações humanas, as injustiças inerentes aos diferentes modelos de organização social, etc. Outro tema recorrente, embora menos visível, é o da relação entre o ser humano e as outras espécies de animais (sim; mesmo que faça todos esforços para se afastar de sua classificação taxonômica, o homem é apenas mais uma das tantas espécies animais que habitam nosso planeta).

O pensamento humano acerca dessa relação é marcado por uma clara dualidade: de um lado, erguem-se as vozes que defendem a utilização dos demais animais pelo homem, de maneira menos ou mais exploratória, mas sempre justificada por uma diferença de status moral entre “nós” e “eles”, sendo, assim, o nosso ato de comê-los plenamente justificado; do outro, aquelas vozes que advogam direitos morais básicos aos animais não-humanos, direitos tais como o direito à vida, à integridade física, à liberdade (e, é claro, uma conseqüência direta da observância de tais direitos seria nossa renúncia à utilização dos demais animais como meios para nossos fins, sejam esses fins quais forem, até mesmo gastronômicos).

Essa dicotomia, que aparece nos mais diferentes contextos, inclusive na literatura, é a rigor, uma herança filosófica helenística.

Vejamos os pensadores que estão de um lado dessa contenda.

No século VI a.C., Pitágoras, filósofo e matemático, já falava sobre respeito animal em sua obra “Do consumo da carne”, pois acreditava na transmigração de almas. Ou seja: de acordo com Pitágoras, os animais não-humanos são seres humanos reencarnados. Por isso, a justiça e a compaixão demonstradas a vacas e porcos são justiça e compaixão demonstradas a seres humanos. O pensamento pitagórico foi seguido também por Sócrates e por seus discípulos, incluindo Platão. Assim, filósofos neo-platonistas vieram também a advogar a dieta vegetariana. Um exemplo é Porfírio (233-306 d.C.), que adota uma postura vegetariana, porém com um embasamento mais moderno em sai obra “Da abstinência”. Ele defende que os animais não-humanos merecem consideração moral devido àquilo que são (criaturas sensíveis e conscientes) e não devido ao que não são (seres humanos aprisionados em corpos de animais). O que mais espanta Porfírio não é que pessoas como ele optem por não comer carne, mas sim que alguém tenha optado por fazê-lo:

Quanto a mim (...) pergunto-me por que acidente e em que estado da alma ou da mente o primeiro homem que o fez tocou o sangue com sua boca e levou os seus lábios à carne de uma criatura morta, aquele que pôs à mesa corpos mortos e fétidos e aventurou-se a chamar de nutrição os pedaços que um pouco antes bramiam e gritavam, moviam-se e viviam. Como puderam seus olhos suportar o massacre de se cortarem gargantas, de se esfolar o couro, de se arrancar um membro de outro membro? Como pôde o seu nariz agüentar o fedor? Como é que a imundície não causou repulsa ao paladar daquele que fez contato com as feridas de outros e sugou fluidos e soros de ferimentos mortais?

Por sua vez, o ensaísta romano Plutarco (56-120 d.C.) escreveu em seu “Do consumo de carne”:

Mas, em prol de algum bocadinho de carne, privamos uma criatura inocente do sol e da luz e daquela porção de vida e tempo que ela veio ao mundo para gozar.

E quem encontramos defendendo, na Antiguidade Clássica, a posição contrária?

Temos, por exemplo, Aristóteles, que escreveu, no século IV a.C., argumentando que os animais estavam distantes dos humanos na Grande Corrente do Ser ou escala natural. Alegando irracionalidade, concluía, assim sendo, que os animais não teriam interesse próprio, existindo apenas para benefício dos seres humanos.

A partir dessas duas linhas de pensamento sobre a relação homem-animal, a linha pitagórica e a linha aristotélica, dividiram-se os pensadores nos séculos seguintes.

No século XVII, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) argumenta que animais não têm almas, logo não pensam e não sentem dor, sendo assim os maus-tratos não eram errados. Contra isso, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) argumenta, no prefácio do seu “Discursos sobre a Desigualdade” (1754), que os seres humanos são animais, embora ninguém “exima-se de intelecto e liberdade”. Entretanto, como animais são seres sensíveis e conscientes, “eles deveriam também participar do direito natural”.

Também Voltaire (1694-1778) respondeu a Descartes no seu Dicionário Filosófico:

Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! Será porque falo que julgas que tenho sentimento, memória, idéias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conhecimento. Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias. Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrarem-te suas veias mesentéricas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimentos de que te gabas. Responde-me maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os órgãos do sentimento sem objetivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição.

Além de filósofos, Rousseau e Voltaire eram também homens de letras, escritores, na acepção de criadores de obras de articulação e conteúdo estético (isto é, não estritamente argumentativo, lógico e racional, como é o discurso filosófico). Foi a partir deles, então, que surgiram e ganharam força de côro muitas e variadas vozes vegetarianas na literatura.

Conheceremos, de agora em diante, neste blog, algumas delas e o que elas podem nos ensinar, não exatamente através da razão, mas sim através da sensibilidade.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A vegana arte de apreciar obras de arte

Autor: Dennis Zagha Bluwol
(Texto presente no Zine-Livro "Escritos Éticos & Picaréticos")

A vida vegana. Certeza de ser algo bom, mas ando sempre incomodado com o que aparece por aí. Tenho culpa eu se a normalidade é tão assombrosa? Sou ranzinza eu pela violência ter virado o status quo?
Adoro música clássica e às vezes vou a concertos, durante os quais, mesmo estando com a mente a anos-luz de distância, inebriado por todo aquele som, aquelas dezenas de instrumentos em acordo, levado por relevos sonoros inimagináveis, há sempre algo me cutucando os neurônios: esses arcos são feitos com crina de cavalo! Incômodo que não passa nem na mais delicada sinfonia. E fico pensando: o que mais deve haver de origem animal nesta orquestra? Será que essa flautista de gestos e expressões tão doces é uma devoradora de cadáveres? Será que eles festejam uma boa temporada com um grande churrasco? Será que a gentileza que transmitem na música existe no modo como convivem? Possuo uma amiga instrumentista que já tocou em orquestra. Disse-me que o ambiente das orquestras é o mais competitivo possível. Dói-me saber que gente que é capaz de expressar tamanha beleza possa ser tão vil e egoísta. E as crinas? Não há outro modo? Dizem que os materiais sintéticos não produzem um som tão bom. Mas vos pergunto: e o que o cavalo tem a ver com isso? Nunca vi um cavalo apreciador do impressionismo francês.
E os museus? Já me incomoda o fato de termos sido adestrados a achar normal que arte fique em museu, para ser analisada por meia dúzia de especialistas e discutida no café. Ou logo esquecidas. Mas, para mim, reles apreciador sem formação, além de tentar entender ou me libertar para sentir o que uma obra de arte pode me transmitir, fico pensando a cada quadro: será que esta tinta é de origem animal? Sei que na época medieval se fabricava tintas com ovos e pigmentos. Mas nunca vi uma galinha cubista. Já vi galinhas amontoadas em cubos de barras de ferro, mas cubistas, nunca.
E cinema? Adoro cinema. Mas e as películas dos filmes cinematográficos? São feitas com gelatina de origem animal. Tutano de boi assassinado. Já vi um boi que lembrava o Woody Allen, mas isso não me deixa menos preocupado. Agora há cinema digital, mas muitos acham que não é a mesma coisa. Pessoalmente, não sei, mas creio que os bovinos não estão muito ligados nas possibilidades de fotografia nas diferentes mídias.
Mas não pense que essa preocupação é de caráter esnobe: concertos, museus... E no sambão? Também gosto de um bom samba, mas e toda aquela percussão feita de pele? Não há como justificar. Falar em pandeiro com pele de gato, além do sempre companheiro do samba, o churrasquinho, que pode também ser de felino, são já piadas consagradas, quando não realidades. Não sei o que é pior.
A violência é tão arraigada em nossa cultura que não se pára para questioná-la. Na verdade, ela não é nem percebida. Seres vivos e sencientes facilmente viram arcos de violino, tambores, pandeiros, tintas, filmes fotográficos. Que espécie de arte é esta? Nazistas faziam belos abajures com pele de judeus. Ingleses fizeram belas bolsas para tabaco com saco escrotal de aborígines tasmanianos. Nós fazemos belos filmes com tutano de boi e belas sinfonias com crina de cavalo. E eu não vejo uma diferença substancial. A violência é a mesma. Só as espécies que mudam. E isto não justifica uma alteração de moralidade.
Ei, sapateador, esses sapatos são de couro, não?

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O Parlamentar e o Cavalo

Daniel Kirjner

Luiz Amâncio não passava de um político indigestamente ordinário; daqueles com a falácia adestrada para o ofício parlamentar. Seus caprichos eram tão mundanos como secretos. Nunca havia sido condenado nem por afanar chicletes, apesar de sua consciência ter olvidado delitos piores. Naquela terça-feira de junho, em rotina rara para os deputados federais, foi trabalhar na Câmara. Talvez, nem em seus sonhos menos medíocres tivesse projetado o que estava por acontecer.


Adentrou ao congresso com a convicção de que contaria algumas mentiras, reforçaria “amizades”, para depois mergulhar no luxo de uma vida mansa. Trabalhar era como ir ao dentista: um mal bimestral e necessário, com fins de preservar a fachada. Mas a melhor justiça, mesmo que rara, é produto do acaso. Vejam vocês que, durante o discurso de Luiz Amâncio sobre um reajuste aos servidores do executivo, algo de inexplicável aconteceu: passos decididos como de cascos batendo no chão soaram, rompendo por sobre a sua fala. Mesmo com tamanho eco que ostentava a casa da lei federal, jamais se havia ouvido nos corredores ruído parecido, como patas de cavalo marchando sobre granito. Amâncio não pode continuar discursando com o barulho incômodo, tendo espichado o olhar para ver o que, ou quem, era responsável pelo barulho de cavalaria.

A resposta para essa pergunta deu-se em segundos, e qual não foi a surpresa de seu óbvio conteúdo: tratava-se, factualmente, de uma cavalaria. Mas não era qualquer uma! Aquela que adentrava ao Congresso Brasileiro não era montada por cavaleiros ou amazonas, mas rumava independente por sobre as salas oficiais do poder instituído. Eram cavalos únicos; todos os vinte que desfilaram na sessão plenária com autênticos ternos Armani. Luiz Amâncio, velho deputado e pecuarista, pensou que aquilo era uma piada da oposição. Contudo, essa impressão foi logo abatida pelo inesgotável estarrecimento causado pela primeira frase pronunciada pelo equino que se destacava à frente:

- Boa noite, senhores Deputados dessa ilustre Casa.

Quem pensa que houve o mais discreto ensaio de resposta ao cavalo, engana-se. Nenhum parlamentar, assessor, guarda ou funcionário da limpeza ousou dizer palavra. O justificado transe coletivo era tão material quanto as paredes da sala. Alguns ilustres políticos brasileiros, conhecidos pelo carisma e austeridade, chegaram a salivar compulsivamente, em sinal de estado de choque. Mas tal impacto não impediu o cavalo de prosseguir, apesar de mostrar-se bastante encabulado com a situação:

- Creio que Vossas Senhorias não estão muito acostumadas com minha espécie de interlocutor. Bem, para falar a verdade, nem sei ao certo como consigo expressar-me, modéstia à parte, tão bem. O fato é que até ontem eu relinchava pelado e hoje venho aqui, papear em tão ilustre Casa, trajando terno e óculos escuros.

Tomado de uma valentia, imbuído pela impulsividade, Luiz Amâncio enfim questionou o chefe dos cavalos. Indagou, revoltado, sobre que armação estava acontecendo, se aquilo era algum tipo de brincadeira sem graça. Ainda efusivo, bradou aos quatro ventos que esse tipo de palhaçada enfraquecia a democracia, pois brincadeiras assim não deviam ter lugar onde nascem as leis. O cavalo, calmamente, respondeu:

- Tenho orgulho de ser um animal e, apesar de não ter muita prática em discursar, o faço de maneira séria e responsável.

O parlamentar retrucou com o argumento que julgava mais sensato: o de que era fazendeiro desde que nascera e tinha certeza de que cavalo não falava! Tal frase gerou uma risada debochada entre a peculiar cavalaria, que preencheu todo o salão. E, para ironizar o deputado, o grupo de animais entoou – em coro – o “Hino à Bandeira”, de Olavo Bilac e Francisco Braga; aquele mesmo, do “pendão da esperança”. Amâncio não pode conter uma discreta inveja ao constatar que aqueles seres não só falavam com grande desenvoltura, como eram mais patriotas e versados que ele. Constatando o impacto daquela solene canção, o cavalo que estava à frente retomou a palavra:

- Poderíamos continuar por mais alguns minutos e cantar o Hino Nacional, o da Independência e – quem sabe – até um sucesso de Roberto Carlos, mas não é para isso que viemos. Na verdade, nosso fim em tão ilustre Casa é bem mais político que performático. Como os senhores ainda ignoram, não somos nós apenas os animais não humanos que sabem falar. Se saírem à rua no dia de hoje verão que todos, desde os pequenos répteis até as vacas, têm a capacidade de se comunicar verbalmente. É inútil perguntar a qualquer um de nós o motivo de tal acontecido, nem o engenho que nos tornou assim, pois não fazemos a menor idéia. O certo é que todos acordamos nesta madrugada entupidos de cultura, no sentido mais antropológico da palavra - antropologia tal que, em vista dos fatos, terá de ser renomeada. A única coisa que vos asseguro ao certo é que o excelente gosto para roupas é privilégio dos cavalos, apesar de nossa pele já ser um estouro!

Novamente, o carismático líder provocou o riso relinchado de seus correligionários. Luiz Amâncio, simplesmente embasbacado, fez um esforço colossal e demorado para, no microfone, pedir que aquela bela peça de montaria, em sua concepção, prosseguisse. O cavalo, atendendo ao reclame do parlamentar, continuou:

- Pois bem, Senhores, agora, que todos já sabem (ou ainda não compreenderam) o que acontece, irei apresentar quem vos fala. Nós somos os Houyhnhm, nome inspirado em uma grande estirpe criada na literatura humana infantil. Fomos eleitos pelos representantes de todos os animais, em pleito democrático, para aqui, neste recinto, falar e reivindicar algo que deveria ser direito de todos. Creio que tal vitória nas urnas não é fruto apenas de nossas habilidades políticas, mas sim de uma certa admiração que – apesar de não se traduzir exatamente em respeito – sua espécie tem pelos cavalos. Se aqui aparecessem cachorros ou coelhos, outros seres afetivamente ligados aos humanos, provavelmente seriam tratados como crianças pequenas e jamais poderiam propor coisa alguma. Quanto aos animais selvagens, hoje são por demais raros para assumirem o risco da viagem que empreendemos. As galinhas e bois, por medo de Vossas Excelências, não se candidataram e – por serem a maior parte dos representantes – coube a nós apenas a promessa de dar voz a suas causas para sermos eleitos. Fato é que nossa demanda é bastante simples: queremos representação legal, na Constituição deste ilustre Estado, para podermo-nos defender de pessoas ditas humanas. Na Carta Magna deste ilustre País, somos somente designados como parte do ecossistema e, apesar de estar lá estabelecido que não devemos ser maltratados, a escravidão e a exploração dolorosa são institucionalizadas e fomentadas pelo Governo. Portanto, como somos seres sencientes, capazes de todos os sentimentos possíveis e alguns novos incutidos pela dor, reivindico Emenda Constitucional! Que todos os animais tenham individualidade e capacidade de representação legal em qualquer instância desta República!

Luiz Amâncio, pecuarista radical e político experimentado na arte do convencimento, não pode escutar aquilo inerte e, nesse momento, vislumbrando a ameaça ao seu estilo de vida, intercedeu. Afirmou que os tribunais já andavam abarrotados somente com causas humanas; que a Câmara se afogava em projetos pendentes e mal conseguia votar o Orçamento da Nação. Tomado pela coragem que o desespero fomenta em uma presa ameaçada, o deputado apontou o dedo na direção dos cavalos e indagou, bradando, sobre quem eram os animais para aparecerem de repente e reivindicar algo que as pessoas tanto tempo levaram para construir. Ao ouvir tal pergunta, a comoção tomou conta dos equinos. O Houyhnhm chefe, que agora ofendera-se profundamente, com lágrimas escorrendo por sua larga face, respondeu emocionado:

- Vocês querem saber se temos direito de reivindicar algo? Pois bem! Não queria apelar para o sentimentalismo, nem para o choque que a injustiça causa nos seres que têm compaixão. Mas como esse homem não faz menção de demonstrar respeito, falarei o que há muito tempo calamos, pelo simples fato de – mesmo sentindo cada sensação – não soubemos como expressar! Querem saber quem somos, ilustres parlamentares? Somos aqueles que, por séculos a fio, carregamos a Humanidade nas costas, entupidos por arreios apertados, chicoteados ao mínimo sinal de cansaço. Também fomos atração de rodeios! Molestados em um estranho ritual humano. Eu posso dizer, caro senhor, que minha genitália foi amarrada com fim de causar-me espasmos de dor. Tudo isso para que um cowboy passasse alguns segundos sobre minha costas e uma multidão de hipócritas ensandecidos risse de minha desgraça. Esse mal não é só meu! Também foi partilhado por bois que, de tão traumatizados pela dor, não puderam se apresentar aqui, em face de Vossas Excelências, assim como não vieram as galinhas de granja, privadas violentamente de seus bicos para que não se matem no desespero de um recinto fechado que abriga tantos animais, onde muitos não sabem como se mover e só puderam ver a luz solar como um borrão, na iminência da morte. Perecem, talvez neste momento, porcos urrando de dor, como se seus pulmões sangrassem em gritos pela vida. Isso sem mencionar o estupro, prática tão desprezada até pelos criminosos de sua espécie. Para assegurar a produção em série de cavalos, vacas, galinhas e porcos, entre outros, as genitálias de nossos pais foram violadas e manipuladas sem consentimento, muitas vezes sob profunda dor. O leite e o ovo que vossa sociedade consome vem de seres mantidos em constantes gestações, sofrendo o impacto disso em seus corpos, para alimentarem outros que não seus filhos. Por essas e outras que pedimos justiça, ou pelo menos um direito de resposta aos males que nos afligem!

Luiz Amâncio, tomado de cólera, grita indignado que aqueles animais desejavam a morte humana! Colocou que era absurda a idéia de uma nutrição saudável composta somente por vegetais e que as pessoas fazem todas aquelas coisas porque elas são da maior importância cultural e alimentícia. O cavalo, teimando em segurar o pranto que provinha da lembrança de anos de sofrimento, retrucou, fingindo calma:

- Não só é possível para um humano alimentar-se e ser feliz sem a nossa dor, como muitos dos seus já vivem dessa forma. O que peço, sem retribuir a violência que nos foi dada, é que, daqui por diante, os senhores passem a respeitar o que diz sua própria Constituição, como primeiro passo para que, em um breve futuro, sejamos não apenas parte do ecossistema, mas indivíduos perante a Lei. Creio que, agora que possuímos as faculdades da fala e do entendimento, e, como diria Kafka por meio de Pedro Rubro, temos a “inteligência de um europeu normal”, seja-nos permitido pelo menos o privilégio de não sentir dor e o direito de ir e vir.

Nesse momento, oficiais do DOE invadiram o Congresso, alvejando a balas todos os Houyhnhm. Luiz Amâncio foi tomado por um alívio profundo por ver findado, pelo menos por ora, o medo que lhe preenchia. Quanto à compaixão pelos virtuosos cavalos, não teve. Já era seu costume eliminar, com as próprias mãos, a vida de outros daquela espécie que ficavam velhos e não mais serviam de montaria. Em sua cabeça, a lógica era quase a mesma: aqueles cavalos morreram porque ficaram por demais inteligentes e não mais serviam de montaria. O que aconteceu depois desse evento não me cabe relatar aqui, neste diminuto conto. Mas não finalizarei esta prosa sem dar uma pista do futuro: muito mais havia para ser dito e, mais ainda, para ser ouvido.

Daniel Kirjner

Blog de Literatura Vegana!

Olá amigos, veganos ou não! É com maior prazer que inauguro presente espaço com o texto "O Parlamentar e o Cavalo", no qual iremos expressar em forma de arte as mazelas de nossa causa. Este blog tem por fim dar voz a um outro viés argumentativo da defesa dos animais; um que prime por atingir as pessoas através do sentimento, e não da razão. Se você é vegano e se aventura em alguns escritos pela causa dos animais, adentre o nosso grupo, enviando um e-mail para resistenciavegana@gmail.com. Temos também um Twitter no qual os autores podem postar inspirações mais confucianas: o ResistenciaVEG. Lembrando sempre que este diário é uma iniciativa do Núcleo de Estudos Vegetarianos de Brasília, associado à SVB.

Um abraço! Desejo à todos, desde já, divertidas, emocionantes e inspiradoras visitas ao Resistência!