tag:blogger.com,1999:blog-69770675623798109502024-03-08T07:51:54.033-08:00Resistência Vegana LiteráriaEste blog tem por fim dar voz a um outro viés argumentativo da defesa dos animais; um que prime por atingir as pessoas através do sentimento, e não da razão. Este diário é uma iniciativa do Núcleo de Estudos Vegetarianos de Brasília, associado à SVB.Daniel Kirjnerhttp://www.blogger.com/profile/17675316358027126927noreply@blogger.comBlogger35125tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-63977713624196725472015-07-30T20:03:00.001-07:002015-07-30T20:04:37.217-07:00Sentinelas<div align="right" class="MsoNoSpacing" style="line-height: 150%; text-align: right;">
<i><span style="font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Rafael Bán Jacobsen<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNoSpacing" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNoSpacing" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Tu abres a porta com um
ranger ferido e enxergas o apartamento vazio, congelado na luz cinza da manhã.
Sombras de quadros e móveis restam impressas nas paredes; as tábuas do piso
exibem arranhões de velhas coisas arrastadas e de passos ausentes, como se
pedissem misericórdia. A família foi levada há quase um mês, compartilhando o
destino de todas as outras no mesmo prédio – e de tantas mais que também
habitavam o gueto. É assim: para além dos muros, apenas sob a mira dos
soldados. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNoSpacing" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">No batente, a mezuzá<a href="file:///C:/Users/ACADEMIA/Desktop/PENDRIVE/sentinelas.docx#_edn1" name="_ednref1" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></a>
continua à espera de reverência. Tu a tocas para depois beijar os dedos em
instante de arrepio. Um passo adiante, o estalo da madeira e um latido cortado
de dor. Acordes de raiva assomam por trás do alarme, aos estilhaços. Apesar da
advertência, avanças pela sala pequena em direção ao quarto, até que o espectro
do cachorro vem ao teu encontro, aguerrido mesmo na imprecisão das três patas
que lhe sobram, a quarta levantada, contraída em torno de um furo de bala. Monstros,
tu murmuras, enquanto estendes a mão em convite manso. A resposta vem com outro
latido, esgarçado entre os dentes agora expostos, e o cão recua. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNoSpacing" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Surgem lembranças de todas
as ocasiões em que o viste levado pela coleira, perambulando nas ruas do gueto
junto ao menino mais novo ou ao calado pai. A pelagem tinha uma uniformidade
castanha de açúcar queimado, cobrindo a musculatura orgulhosa e plena de
movimentos, que te impressionava tanto quanto a postura de guardião. Agora,
porém, encontras um corpo magro, parecendo suspenso pelas vértebras pontiagudas,
mal cobertas por raros amarelados – animal cingido de tremores e exilado na
própria fome. Quase um mês. Mesmo assim, há força para o embate, e ele rosna a
impaciência de expulsar o intruso que vê em ti. Insinuas dobrar os joelhos –
talvez, à mesma altura que ele, possa haver concórdia –, mas o cão se coloca em
posição de ataque. Vem comigo, tu falas no ritmo lento das promessas, eu só
quero ajudar. Inclinado à frente, em face ao confronto, tu vês, nas pupilas
enevoadas que em ti se prendem, uma fúria que não consegue faiscar porque, no
íntimo, é desamparo. Tecendo e destecendo fios de solidão e fome, ele espera o
retorno dos seus, desconhecedor da nau presa a trilhos sem redenção, dos
gigantes canibais que aprisionam em seus ventres de arame farpado, do canto
volátil e venenoso das sereias, do ciclope que abre seu imenso olho vermelho
sobre o gueto, sobre Varsóvia, sobre o mundo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNoSpacing" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Riscando as laterais do
focinho, lágrimas secas testemunham a liquidez perdida dos dias cheios, falam
de uma certeza de adeus. O cão sabe e quer esperar. Joga as patas dianteiras à
frente enquanto empina a cauda, como se cruzasse espadas. Por três vezes ainda,
exclama seu édito de banimento em agudos assombrados, reivindicando para si a
posse do universo desfeito que ousaste invadir. Depois, como se lesse em tua
inércia a compreensão última do sacrifício, retorna por onde veio. E o gesto te
enche de espanto, porque é escolha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNoSpacing" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Tu retrocedes, suspirando
vertigens, querendo entender teu diálogo com a renúncia. Fechas a porta para tanta
fidelidade e, no desamparo que sufoca enquanto te afastas, chegas a ignorar a
mezuzá, sentinela muda e sem sangue.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNoSpacing" style="line-height: 150%; text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>
<br />
<div>
<!--[if !supportEndnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<br />
<div id="edn1">
<div class="MsoEndnoteText" style="text-align: justify;">
<a href="file:///C:/Users/ACADEMIA/Desktop/PENDRIVE/sentinelas.docx#_ednref1" name="_edn1" title=""><span class="MsoEndnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoEndnoteReference"><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 115%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-ascii-theme-font: minor-latin; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-language: AR-SA; mso-bidi-theme-font: minor-bidi; mso-fareast-font-family: Calibri; mso-fareast-language: EN-US; mso-fareast-theme-font: minor-latin; mso-hansi-theme-font: minor-latin;">[i]</span></span><!--[endif]--></span></a>
Rolo de pergaminho que contém duas importantes passagens bíblicas e que é posto
em um estojo fixado no batente direito das portas. A mezuzá deve ser afixada no
umbral direito de cada dependência do lar, sinagoga ou estabelecimento judaico,
como lembrança do Criador. Os judeus costumam beijar a mezuzá toda a vez que
passam pela porta, para lembrar as orações que estão contidas ali dentro e os princípios
do judaísmo que elas carregam. O estojo costuma ser decorado com a letra
hebraica “shin”, que é a letra inicial da frase “shomer dlatot Israel”
(“guardião das portas de Israel”). <o:p></o:p></div>
</div>
</div>
Rafael Bán Jacobsenhttp://www.blogger.com/profile/10584817415444028132noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-58177810630751143072012-09-23T16:38:00.000-07:002012-09-23T16:51:06.317-07:00Poema de VigíliaOlá pessoal. Sei que o Blog anda meio morto, mas hoje aconteceu uma coisa que me deu inspiração para continuar. Escrevi e recitei um poema para introduzir a vigília do Weeac - Dia mundial pelo fim da Crueldade e Exploração Animal. O fiz sem pretensão alguma, apenas como um desabafo vegano. Acontece, que meus versinhos tocaram algumas pessoas e movido por isso os posto aqui em homenagem a todos os seres sencientes que sofrem a opressão humana e a todos os militantes pelos direitos animais.<br />
<br />
Abraço a todos.<br />
<br />
<br />
Poema de Vigília
(Daniel Kirjner)<br />
<br />
<br />
Hoje o sol nasceu na cor vermelha.<br />
Não pelo desvio da Luz<br />
que o desvario ótico conduz<br />
a um delírio em cada centelha.<br />
<br />
Seu brilho rubro, neste dia,<br />
é o luto ao oculto que jaz nos prados,<br />
nos circos, almas e supermercados,<br />
no verbo inaudível de uma cela fria.<br />
<br />
E, olhando o firmamento,<br />
eu, que nada de Deus acredito,<br />
chorei uma oração castrada de mito,<br />
de palavras sagradas jogadas ao vento.<br />
<br />
Lembremos daqueles que habitam os pratos,<br />
que jazem partidos por preços baratos,<br />
privados no ventre do gosto da vida.<br />
<br />
Lembremos daquela de quem tomaram o leite,<br />
a quem estupraram com o punho do açoite,<br />
roubando seus filhos de sua acolhida.<br />
<br />
Lembremos dos filhos, apenas crianças,<br />
produtos da fome, fetos sem herança,<br />
bebês engolidos na fome dos séculos.<br />
<br />
Lembremos do escravo do homem do circo,<br />
elefante enforcado em nó corrediço,<br />
por quebrar com coragem a corrente sem elos.<br />
<br />
Lembremos do bico do frango sem luz,<br />
ceifado da face pela mão que o conduz<br />
a uma vida de ovos rolados no abismo.<br />
<br />
Lembremos dos gatos, cachorros de rua,<br />
tirados do seio da verdade nua<br />
e levados à morte febril do facismo.<br />
<br />
Lembremos da dor do bicho-ciência,<br />
batizado no pus, posto em penitência,<br />
pela lâmina fria que viola o abdome.<br />
<br />
Lembremos da morte do bicho sem pele,<br />
que adorna inerte os ombros das mulheres<br />
que ostentam o nada e riem da fome.<br />
<br />
Hoje tentamos ser dor, ser esperança.<br />
Fagulhas verdes que se põem com o sol,<br />
a pele no ombro, o touro espanhol,<br />
o gato, o cachorro, a mãe e a criança.<br />
<br />
Hoje somos nervo, vela e carniça<br />
que grita um verso que nunca é ouvido<br />
pois é soterrado no cego sentido.<br />
Quando a morte é piada, gritamos justiça.<br />
<br />
Pode ser pretensão, ou sonho comum,<br />
da mente insensata, dita radical,<br />
mas vamos lutar por um sonho afinal,<br />
que muitos desprezam como sonho nenhum.<br />
<br />
Então nesse dia, ou em todos do ano,<br />
dizemos com orgulho de olhos marcados<br />
que trazemos a alma e o pulso cerrado<br />
fazendo a vigília de um sonho vegano.<br />
Daniel Kirjnerhttp://www.blogger.com/profile/17675316358027126927noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-17617526542892751092012-02-25T13:37:00.002-08:002012-02-25T13:42:34.424-08:00A Carne é Fraca<p class="MsoNoSpacing" style="font-weight: normal; font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; text-align: right; ">Rafael Bán Jacobsen</p><p class="MsoNoSpacing" style="font-weight: normal; font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; text-align: justify; "><br /></p><p class="MsoNoSpacing" style="font-weight: normal; font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; text-align: justify; ">Diversas pesquisas têm apontado uma correlação entre violência contra humanos e contra animais não-humanos. Uma das mais dramáticas evidências dessa ligação é o fato de os índices de violência serem usualmente mais elevados em cidades onde há abatedouros.</p> <p class="MsoNoSpacing" style="font-weight: normal; font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; text-align: justify; ">A professora de criminologia Amy Fitzgerald<span class="apple-converted-space"><span style="font-size: 12pt; ">, </span></span>pesquisadora da Universidade de Windsor, no Canadá, baseada em pesquisas recentes, afirma que as estatísticas com relação entre matadouros e crime brutal são um fato empírico. Trabalhando com os números divulgados pelo FBI sobre crimes cometidos em 581 municípios dos Estados Unidos entre 1994 e 2002, a pesquisadora montou um gráfico que mostra que, quando o número de trabalhadores num matadouro de uma comunidade aumenta, a taxa de criminalidade também aumenta. Mais detalhes sobre esse tipo de estudos podem ser encontrados aqui: <o:p></o:p></p> <p class="MsoNoSpacing" style="font-weight: normal; font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; text-align: justify; "><a href="http://www.vidavegetariana.com/site/noticias.php?page=noticias/331"><span style="font-size:12.0pt">http://www.vidavegetariana.com/site/noticias.php?page=noticias/331</span></a></p> <p class="MsoNoSpacing" style="font-weight: normal; font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; text-align: justify; "><span style="font-size: 100%; ">O conto a seguir apropria-se livremente desse fato para tecer ficção. </span></p><p class="MsoNoSpacing" style="font-weight: normal; font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; text-align: justify; "><span style="font-size: 100%; "><br /></span></p><p class="MsoNoSpacing" style="font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; text-align: justify; "><span style="font-size: 100%; "><b>A CARNE É FRACA</b></span></p><p class="MsoNoSpacing" style="font-weight: normal; font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; text-align: justify; "><span style="font-size: 100%; "><br /></span></p><p class="MsoNoSpacing" style="font-weight: normal; text-align: justify; "></p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:12.0pt">Clemenciano sempre gostou de carne fresca. Apreciava me contar sobre a infância na fazenda dos avós, onde fora iniciado por um capataz nos mistérios do abate. Não tinha sequer idade para vestir calças, e suas mãos já compreendiam, em plenitude, a mecânica da morte. Três vezes por semana, sob a supervisão do capataz, pegava uma galinha dessas de pátio, comedoras de milho e que ciscam atrás de minhoca, e torcia o pescoço dela, que ficava corcoveando atirada ao solo, curiosamente atraindo a atenção dos galos do terreiro, que se lançavam com ânsia sobre a ave agonizante, bicando-a. Em datas especiais, o espetáculo era ainda maior: pendurava-se, pelas patas traseiras, nos galhos de um frondoso umbu, um porco cevado e cravava-se a faca direto no coração – enquanto ressoava um berro que mais parecia de criança, o sangue, matéria-prima de morcelas e linguiças, jorrava em arco vináceo, para ser colhido em uma bacia. O ápice, o verdadeiro êxtase, porém, era o abate, desmembramento e corte dos bovinos; às vezes, Clemenciano ficava, horas a fio, descrevendo o processo, desde as marretadas entre os olhos até o armazenamento da carne. Confesso que tais preleções me perturbavam; era como se eu já intuísse tudo o que ele era capaz de fazer. O pior era quando, à mesa do jantar, repetia a história dos vitelos: na fazenda de sua meninice, os novilhos eram apartados bem cedo das mães e mortos em poucos meses; assim, pouco desenvolvidos, sem músculos, transformavam-se em bifes levemente rosados e macios, desses de cortar com colher. Certa noite, enquanto nos preparávamos para deitar, eu vestindo a camisola e ele, ao toucador, lavando o rosto, contou-me da tarde em que ele e o capataz, ao eviscerarem uma vaca, depararam com o feto, quase um fantasma desenhando-se através da membrana uterina. O próprio Clemenciano tratou de retirá-lo da bolsa e separá-lo da placenta. Percebeu que a criatura já tinha quase dois palmos, aquele bezerrinho de pele nua e translúcida, de olhos cerrados. Então, meu marido completou: “Ele se mexia, Diva, muito pouco, mas mexia; até parece que respirava. Cortei a cabeça com um machado. Foi o melhor vitelo, a carne mais tenra que provamos; meus avós elogiaram; eu e o capataz não revelamos que era um natimorto. Foi mais um de nossos segredos.” Naquele momento, inspetor, o que era só asco e desconforto tornou-se medo. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:16.0pt; font-family:Mistral">13 de outubro de 18** - Vendas: dez libras de carne suína, um quarto bovino dianteiro, três carcaças de frango. Compras: dez achas de lenha para o defumador, um rolo de barbante, uma pedra de amolar, cinco angolistas de tamanho médio (na gaiola). Em casa, Diva continua a esquivar-se; ontem à noite, rejeitou-me com uma desculpa qualquer, o que, aliás, tem se repetido com frequência. Ao menos, não descuida dos afazeres do lar: depois da ceia, um pernil assado com batatas, encontrei os lençóis bem engomados e recendendo a alfazema e alecrim. Amanhã, deve chegar o sobrinho dela; Tomás, treze anos, um bom menino, ela diz, disposto a auxiliar-me no açougue enquanto tiver pouso em nossa casa. Um bom menino. Espero que assim seja. Diva falou que escolho mal os meus ajudantes, por isso os dois anteriores sumiram sem dar satisfações. Afirma que Tomás é muito responsável e não trará dores de cabeça. Tece tais comentários em tom casual, mas há um rútilo intruso em suas pupilas, asseverando que Diva sabe de coisas que não ousa dizer.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><i><span style="font-size:12.0pt">A morada de tia Diva era maior do que eu pensava: no térreo, a casa de carnes; no segundo andar do sobrado, as arejadas salas, os quartos, o banheiro de azulejos pintados e a cozinha, com seus odores de louro, esfregão e banha. Senti-me quase à vontade: tia Diva se parece muito com a minha mãe – que Deus a tenha! –, e isso é bom; no entanto, o Sr. Clemenciano, logo à primeira vista, não me inspirou simpatia. Não sei explicar o porquê: talvez a barba cerrada e cor de chumbo, o olhar anoitecido, as costas arqueadas e os dedos rijos de tanto trabalhar, curvado, de cutelo em punho, sobre a tábua de cortar carne. Foi exatamente essa a primeira visão que dele tive: o homem corpulento, brandindo a lâmina em golpes fortes e ritmados, fazendo voarem, sobre a mesa ensebada, as rodelas de ossobuco. Era uma tarde quente, e eu estava exausto por causa da viagem – creditei a esses fatores o mal-estar que se apossou de mim. O Sr. Clemenciano se achava tão absorto em seu ofício que não percebeu quando entrei, acompanhado por tia Diva. Além das batidas secas do cutelo, ouvia-se apenas o zumbido de uma nuvem de moscas que pairava sobre as caixas de fatos de boi e o ranger longínquo das rodas de alguma carroça. Mesmo quando a tia o chamou, ele não teve pressa em vir ao nosso encontro. Lentamente, esfregou as mãos no avental repleto de manchas e, calado, estendeu-me a destra em cumprimento. Hesitei por um átimo, mas engoli a repugnância e retribuí a saudação (precisava me acostumar, afinal aquele seria meu trabalho, pelo menos por um ano). Elevou as sobrancelhas, e foi como se os olhos cor de musgo me sorvessem, a contragosto, um pouco da alma. Arrepiado, escutei a melodia de sua voz cava: “Prazer, Tomás; prazer em conhecer-te.”</span></i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:12.0pt">Sim, inspetor: quando conheci Clemenciano, aqui mesmo na cidade, ele já era dono do açougue atrás da igreja, na Rua do Carmo. Difícil explicar o que me fez aceitar sua proposta de casamento. Eu era uma normalista sem noção alguma da vida para além dos muros da escola das irmãs. Eu tinha apenas dezesseis anos e um futuro esvaziado de sonhos; ele já se aproximava dos quarenta, comerciante bem estabelecido, e a ideia de não precisar pensar no amanhã talvez tenha sido sedutora para mim. Nossa vida conjugal nunca foi o éden pressuposto, nem mesmo nos primeiros anos. Confesso que eu não gostava quando ele me fazia carinhos com as mãos ásperas, que me intimidava o volume do seu corpo maduro, que era sufocante o contato com seus pelos, principalmente os do rosto, que arranhavam; além disso, agia com rudeza e, por vezes, me machucava. Todavia, jamais deixei de cumprir com meus deveres de esposa, exceto nos últimos tempos, quando as minhas suspeitas e, depois, as certezas aniquilaram qualquer possibilidade de entrega. Foram vinte anos, inspetor, duas décadas dividindo a alcova com um demônio.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:16.0pt; font-family:Mistral">21 de outubro de 18** - Poucas vendas: três libras de carne bovina moída, um frango inteiro, quatro peças de presunto. Doação de uma costela de ovelha e um lombo suíno para o orfanato paroquial. Dez frangos abatidos e depenados. Sete rolos de linguiça colocados no defumador. Quarto dia de trabalho com Tomás (pela manhã, assiste às aulas no liceu; à tarde, permanece à minha disposição). Pedi a ele que removesse as moelas dos frangos recém-sangrados, conforme ensinei, e, tão logo rasgou o primeiro deles com a faca, saiu correndo para vomitar junto ao muro do quintal. Melhor deixá-lo na limpeza do balcão, no atendimento à freguesia (vi, ontem, que estava trêmulo pelo simples fato de ter de arrancar as penas das galinhas e escaldá-las). Um menino tão fraco. Mas não será assim por muito tempo: ele logo aprenderá as necessárias lições. Seja como for, parece-me o mais interessante até agora, e eu não costumo me enganar.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><i><span style="font-size:12.0pt">No princípio, não foi nada fácil o trabalho no açougue. Não só por causa do fartum, da sujeira toda, dos animais mortos, mas também pelo Sr. Clemenciano. Inquietava-me o contraste entre a rispidez com que, em geral, me tratava e os olhares que, vez por outra, ele me lançava. Não fosse absurdo, eu diria que era um olhar paternal. Contudo, o tempo se encarrega de dar formas novas a tudo que achar por bem remodelar, e nossa relação foi se tornando mais amistosa. Lembro-me do exato momento em que essa mudança começou. Eu já estava há quase duas semanas em minha nova rotina, e o Sr. Clemenciano decidiu me ensinar alguns cortes de carne. Colocou-me diante de um volumoso naco de fiambre, róseo, marmoreado de veios de gordura branca, e mostrou, antes de mais nada, como segurar a faca da maneira correta. Apontou, então, as discretas ranhuras da carne: “Deves cortar no sentido das fibras, cada fatia com uma polegada.” Mal comecei a mover a faca, e ele interveio: “Não, não, está errado; vou te mostrar.” Foi inevitável o sobressalto quando ele colou às minhas costas e agarrou, com firmeza, minhas mãos, guiando-as na execução dos talhos. “Assim, olha, não é difícil”, falava por sobre o meu ombro, seu hálito exalando tabaco e bebida. De repente, sem que percebesse, minhas mãos já haviam assimilado aquela nova dinâmica e seguiam sem ajuda. Meus lábios arquearam-se de contentamento – eu, ali, já não era mais um estranho. Então, muito sério, o Sr. Clemenciano ralhou, chamando minha atenção para uma profunda verdade: “Para com isso, rapaz; acaso já viste um açougueiro sorrindo?” </span></i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:12.0pt">O primeiro, até onde eu sei, foi o Henrique. Um menino lindo, inspetor. Era um desses moleques que vivem em redor do porto, sempre buscando serviço em troca de tostões. Clemenciano ofertou-lhe trabalho no açougue quando o viu, certa manhã, ajudando a descarregar caixas e sacos de um vapor recém-atracado. Contou-me que ficara impressionado com a força do Henrique, que, apesar de não ter mais do que treze anos, ombreava com os estivadores na presteza com que desempenhava a tarefa. Convenceu-o com facilidade: serviço mais leve, gorjeta maior, um canto para dormir nos fundos do açougue. Ele dizia preferir os mais novos porque reclamavam menos das ordens e do pagamento, e eu nunca desconfiei de que não era apenas isso. Conhecia, desde antes do casamento, a reputação de solitário e excêntrico que tinha o Clemenciano; porém, nada disso me preocupou – afinal, excentricidades temos todos nós. É tudo uma questão de quem sabe melhor disfarçar. No caso de Clemenciano, então, a transparência parecia-me uma virtude. Voltando ao Henrique: não durou três meses. Eu conversava pouco com ele, até porque nunca gostei de descer ao açougue e transitar por ali, um lugar bruto, o senhor entende, não é? Um ambiente nada adequado para uma mulher de sociedade, nem para fazer compras; só escravas a mando e homens, brancos ou negros, iam lá deixar suas patacas em troca de pedaços de animais. Mas o garoto me parecia assustadiço, e eu não compreendia bem por quê. Começou cuidando do balcão, da limpeza, da organização da despensa, mas logo Clemenciano fez questão de ensinar-lhe todas as lides do açougue, inclusive matar. Em uma cinzenta manhã de julho, despertei com gritos horrendos que vinham do pátio do açougue, que fica logo abaixo da janela do quarto. Debrucei-me sobre o peitoril e vi o porco amarrado, deitado sobre um cavalete improvisado com ripas, e o bicho corcoveava, torcia-se todo enquanto o sangue gorgolejava através de uma ferida no pescoço; Henrique tinha a faca nas mãos, e o Clemenciano bradava: “Não, tu erraste a veia, é aqui, olha, aqui, passa a lâmina de novo.” Foram mais três golpes até que o menino acertasse, e, a cada facada, eu me agitava, padecia de tremores e uns calores de embriaguez; foram três golpes, mas, depois do segundo, o porco já não tinha forças para protestar: convulsionava de leve e soltava um ronco doído, bem lá de dentro. O Henrique estufou o peito, orgulhoso. Aquela cena ficou, por dias, embaralhando-se em meus pensamentos, e, quando acontecia de eu passar por Henrique, detinha-me a observar seus gestos, a expressão do rosto, e era inevitável a constatação: aquele já não era mais o rapazinho das docas, algo fora roubado dele. Uma semana depois, desapareceu, inspetor, sem deixar rastro. O Clemenciano parecia irritado, mas já se resignava: “Pegou a féria e sumiu; mas é mesmo um inferno conseguir bons empregados hoje em dia.”</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:16.0pt; font-family:Mistral">26 de outubro de 18** - Açougue fechado. Fomos à missa, Diva, Tomás e eu. Aproveitei a tarde para ensinar ao menino o funcionamento da câmara de defumação. Expliquei-lhe que os produtos cárneos, durante a defumagem, adquirem coloração dourada, textura e suculência agradáveis, e o sabor final pode ainda ser incrementado com especiarias (canela, noz moscada, cravo-da-índia) e ervas (estragão, salsa, anis, manjericão). Usando o pernil que limpamos ontem, demonstrei as etapas de cura na salmoura, lavagem e, finalmente, defumação. Ele mesmo dependurou a carne no gancho, dentro da estufa de defumagem; acendemos juntos o braseiro, que, conforme salientei, precisa ser constantemente alimentado com algum tipo de madeira dura (mogno, bétula, carvalho, nogueira), e sempre em quantidades maiores, para fazer subir, aos poucos, a temperatura. Tomás gostou do mecanismo de roldanas e alavancas que montei para baixar e levantar a tampa da chaminé, que só deve ser fechada na etapa intermediária do processo de defumação (no início, a secagem, e no fim, o cozimento, a chaminé deve estar aberta). Meu jovem ajudante é esforçado, e eu, inegavelmente, o aprecio cada vez mais. Ao entardecer, contrariando os próprios hábitos, Diva surpreendeu-nos ao descer até o açougue. Recomendou a Tomás que fosse banhar-se; afinal, estava coberto de fuligem e logo seria servido o jantar. Ele obedeceu de pronto. A mim, ela não disse nada, apenas me olhou com aquele jeito de quem guarda mistérios, de quem acusa sem palavras.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><i><span style="font-size:12.0pt">Eu me assustei quando, no meio da noite, tia Diva surgiu à porta do meu quarto, em </span></i><span style="font-size: 12.0pt">robe de chambre<i>, segurando um candelabro cuja luz aflita mais fazia brotarem sombras do que claridade. Ao perceber-me desperto, ergueu o indicador e colou-o aos lábios, demandando silêncio. Fechou a porta e, leve, muito leve, quase deslizando sobre as tábuas do assoalho, veio até a cama. Sentou-se ao meu lado, trazendo o seu perfume de flor, e falou, quase sem mover a boca: “Precisava ter contigo, meu sobrinho, mas tinha de esperar Clemenciano dormir.” Demorou para dizer o que tanto queria, perdeu-se em digressões e, quanto mais se prolongava aquele preâmbulo, mais angústia ela demonstrava: o olhar voltando-se, o tempo todo, para a porta; os dedos entrecruzando-se sem lógica; o seio arfante e descompassado. Enfim, a pergunta: “Diz-me a verdade, Tomás, toda a verdade – Clemenciano, alguma vez, te fez mal?” Respondi que não, estávamos até nos entendendo bem melhor do que no começo, e ela cortou: “Pois é isso o que temo, meu querido, que se aproveite da intimidade para envolver-te em coisas feias.” Tentei acalmá-la, asseverando que nada ocorrera fora da rotina, mas tia Diva começou a chorar: “Ai, Tomás, tu és o filho que nunca tive e nem poderei ter; jamais me perdoaria se te maltratassem sob o teto de minha própria casa.” Eu não sabia o que fazer, se apenas calava, se devia abraçá-la, se a levava de volta aos seus aposentos; eu sequer sabia o que pensar de tudo o que ouvira. Entre soluços, já se erguendo, ela confidenciou: “Clemenciano teve, antes de ti, outros garotos que o ajudavam no açougue, e eu desconfio de que fez muito mal a eles; conheço o marido que tenho, Tomás, e há um verdadeiro carrasco dentro dele.” Retomou o candelabro, que havia depositado na mesa-de-cabeceira, e, girando sobre os calcanhares, saiu do quarto. Pelo vão que deixou na porta entreaberta, vi que ela deu apenas uns poucos passos antes de assoprar as velas e seguir pelo corredor agora afogado em trevas. O caos em minha mente prenunciava pesadelos. Esta foi a primeira noite em que, naquela casa, tranquei a porta antes de dormir.</i></span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:12.0pt">O segundo se chamava Cristóvão. Não recordo bem o que me disse Clemenciano a respeito de sua origem; decerto era mais um desses que até possuem família, mas preferem viver com outros meninos, em bandos, pelas ruas, e que nunca – ou quase nunca – são procurados pelas mães viciosas e sem moral. Sei que, umas três semanas depois do sumiço do Henrique, o Cristóvão já estava lá, varrendo a calçada em frente ao açougue. Mais uma criança; doze anos, no máximo. Ao contrário do Henrique, era franzino e ossudo, mas tinha uns olhos cor de violeta e uns cachos pretos e lustrosos que fascinavam. Também tinha mais facilidade para sorrir. Ao cabo de semanas, as coisas pareciam andar bem, mas o inspetor deve ter malícia suficiente para saber que, quando nos vem tão nítida impressão de remanso, o pior dos vagalhões não tarda em erguer-se. Eu achava estranho que, a cada dia, Clemenciano subisse do açougue em hora mais avançada; mesmo com as portas do estabelecimento já cerradas, ele permanecia lá, “tratando dos seus assuntos”, conforme justificou em uma noite na qual o esperei, com a mesa posta, até que a sopa esfriasse por completo. Mentia, e eu estava convencida disso. Decidi ver com meus próprios olhos, e isso não seria uma maneira de me certificar de coisa alguma, pois, a essa altura, certezas eu já as tinha em abundância; era apenas o próximo e previsível passo naquela farsa e, quiçá, um jeito de punir a mim mesma por tanto tempo de cegueira quanto à perversidade daquele que, por desgraça, dormia ao meu lado noite após noite. Era uma sexta-feira, e Clemenciano, mais uma vez, demorava-se. Desci e fiquei andando pela calçada, na expectativa de escutar algum ruído que viesse de dentro do açougue. Cosendo meu ouvido à porta, percebi, sim, barulho de gente, sem conseguir distinguir mais. Resolvi agir; no entanto, sequer foi preciso utilizar a cópia da chave e entrar pela porta lateral, conforme eu planejara: havia, em uma das janelas, um vidro rachado, e, enfiando por ali a minha mão, afastei a cortina e vi. Prensado contra a mesa de corte, na qual jaziam montículos de carne moída e tripas secas para feitura dos embutidos, o corpo de menino do Cristóvão quase desaparecia no abraço rude daquele homem, os pelos grisalhos esmagando-se naquela pele tão clara, tão lisa; e Clemenciano sugava o seu pescoço, os lábios, os lóbulos das orelhas, com aquela boca murcha, asquerosa, indecente. O monstro agarrou, então, o pobrezinho pelos ombros, girou-o com violência e atirou-o de bruços novamente sobre a mesa. Larguei a cortina e, por reflexo, recuei uns dois ou três passos trôpegos. Clemenciano foi pisar em casa apenas meia hora depois; eu já estava recolhida e não o acompanhei na ceia. Foi uma mistura de temor e humilhação o que eu senti enquanto o esperei, na penumbra, voltar ao quarto para dormir, enquanto, quieta, observei-o lavar o rosto e vestir o pijama; porém, o mais legítimo horror foi o que me possuiu quando ele se deitou, bem perto, e começou a me tocar. Gritei, repeli-o aos chutes, e ele – esse demônio – revidou com três murros que quase me arrebentaram a mandíbula. Ele não fazia algo assim desde aquele dia, há dez anos, quando lhe revelei que eu jamais poderia parir os seus herdeiros, que eu tinha o útero seco. Mas foi desse jeito, inspetor: naquela noite, bastaram os socos para saciar a sua volúpia; deixou-me sozinha, chorando agarrada aos travesseiros, e foi beber conhaque na sala. Não se passaram nem cinco dias até que Cristóvão também sumisse. <i> </i></span><i><span style="font-size:12.0pt;font-family:Mistral"> </span></i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:16.0pt; font-family:Mistral">5 de novembro de 18** - Vendas: quatro bistecas de porco, seis libras de carne bovina moída, oito libras de linguiça, dois frangos inteiros, um balde cheio de miúdos de boi. Compras: quinze achas de lenha, um rolo de fumo, duas garrafas de canha. Tomás, hoje, estava calado. Sinto que, de uma semana para cá, está mais arredio. Não consigo lembrar-me de nada que possa ter comprometido a confiança dele em mim; no entanto, o menino tem andado com passos mais cautelosos, fala mais contida e olhos mais abertos. E Diva é sempre um problema. Hoje, brigamos logo cedo, quando, à mesa do desjejum, comentei algo sobre a rápida adaptação de Tomás ao serviço pesado do açougue. Essa observação casual foi o estopim de um acesso de fúria: Diva pôs-se em pé em um salto, derrubando louça ao chão e gritando que já bastava, que eu acabasse logo com o teatro, que eu sabia o que acontecera com meus dois ajudantes, que eu confessasse de uma vez. Tentei não responder, mas ela estava incontrolável, chegou ao disparate de lançar, em minha direção, o bule de café. Diva está passando de todos os limites.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><i><span style="font-size:12.0pt">Apesar da minha insistência e dos meus questionamentos, tia Diva fez-me apenas negaças, como se houvesse se arrependido das coisas que falara naquela noite e que, desde então, me provocavam incessantes pesadelos. Foi em uma dessas lassas tardes de sábado que ficamos, enfim, a sós em casa, pois o Sr. Clemenciano ausentara-se para ir ao mercado público. A tia estava recostada no canapé, distraída na leitura de um desses romancetes da moda. Cheguei-me a ela e, sem hesitar, exigi que me revelasse os pormenores de suas suspeitas quanto ao marido. Mais uma vez, tentou dissuadir-me da vontade de saber; porém, eu estava, a cada dia, mais inquieto e torturado por incertezas, as quais pesavam sobre minha cabeça a todo tempo: na hora do sono, em meio às lições de álgebra ou latim e, principalmente, quando estava lá no açougue a cortar carnes, limpar utensílios ou cuidar da defumagem. Tia Diva resistiu a todo custo, mas, quando implorei que falasse, em nome do amor de mãe que nutria por mim, não pôde seguir calada. Repetiu o que já dissera, que via, no Sr. Clemenciano, um homem de coração empedernido e mente imoral, capaz de cometer barbáries, e, a seguir, acrescentou o tão terrível pouco que, por todos aqueles dias, tanto me trouxera medo, mesmo sem sabê-lo: “Tenho razões para crer – por Deus do céu! – que ele maculou os meninos que trabalhavam com ele e, depois de uns tempos, talvez para que não contassem a ninguém, matou-os, como se fossem porcos. Esta é a verdade, meu sobrinho: Clemenciano, de tanto matar, já não diferencia quem ou o quê.” Não tive tempo de dizer nada; ouvindo o ritmo de um andar conhecido, percutido nos ladrilhos da rua, tia Diva esticou o pescoço em direção à janela e olhou para fora: “É ele; está de volta.” Foi então que ela tomou as minhas mãos entre as suas, que tremiam sem controle, e compartilhou, em um fio de voz, o que era, por certo, a maior das angústias: “O que vamos fazer, Tomás?” O ranger súbito dos gonzos da porta e os passos trovejando escada acima deixaram a pergunta assim, solta, sem resposta, a assombrar. </span></i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:12.0pt">Eram muitas coincidências, inspetor, mas eu não queria acreditar. A certeza me veio desse jeito, aos poucos, e eu já não suportava mais viver ao lado daquele remanescente de Sodoma, daquele matador. Pensei que atacar meu próprio sobrinho seria ousadia demais; no fundo, eu quis acreditar em um resquício de humanidade escondido no calabouço sujo que ele, talvez, em suas preces, chamasse de alma. Mas ele não tinha alma. E Deus sabia disso. E Deus não escutava suas orações. E foi Deus quem me alertou quanto ao perigo, fazendo-me olhar para Clemenciano nos exatos momentos que, quase sem disfarce, ele se punha a admirar a beleza impúbere do meu sobrinho, fazendo-me perceber, nos hiatos do que falava, a maldade e a lascívia, fazendo-me notar a crescente selvageria dos seus modos à mesa e de sua crueldade no abate dos animais, sinal de que outros instintos espicaçavam-lhe os nervos. Eu precisava proteger o Tomás, ou ele seria o próximo, o senhor entende, não? O inspetor viu como acabaram os outros dois, o senhor estava lá quando encontraram: só os ossos enterrados no fundo do pátio para contar a história...</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><i><span style="font-size:12.0pt">Naquele dia, o Sr. Clemenciano esteve ausente de casa desde o começo da tarde até o anoitecer. Quando voltou, foi direto para o escritório, no andar de cima; não passou no açougue, e, se eu não o tivesse, por acaso, avistado pela janela, nem saberia que tinha chegado, porque subiu para casa bem assim, silencioso e cabisbaixo. Depois de algum tempo, fui ter com ele a respeito do serviço que me ordenara e do qual eu cuidava desde muito cedo, apesar da noite maldormida e povoada de sonhos aterradores. Encontrei-o à escrivaninha, de pena e caderno em punho. Pedi licença e perguntei se poderia me ajudar com o defumador, mas ele sequer permitiu que eu terminasse a frase, ordenando que não o interrompesse. Por volta de meia hora depois, sem conseguir resolver sozinho o problema com a intensidade do fogo, que me parecia alto demais, ousei procurá-lo outra vez e obtive uma resposta ainda mais grosseira. Descia de volta ao açougue quando dei com tia Diva no vestíbulo; olhando de soslaio escada acima, cochichei: “Ele já chegou e está intratável.” A tia largou o cesto de compras junto à porta e, com cenho grave, galgou os degraus. Retornei aos afazeres, tentando contornar o problema do excesso de chamas na câmara de defumagem, o que me absorveu bastante nos minutos seguintes, quase ao ponto de eu não notar o estardalhaço que, de repente, sobreveio lá da casa: era como se porcelanas se estilhaçassem e móveis tombassem, tudo acompanhado por gritos lancinantes. Atravessei o açougue correndo, cheguei à calçada e, tão logo pousei a mão sobre a maçaneta da porta do vestíbulo, esta se abriu, dando passagem à minha tia, a tez branca feito cera, os cabelos desgrenhados, os lábios exangues escancarando-se em pedidos de socorro. Atrás dela, com olhos desvairados e passos cambaleantes, vinha o Sr. Clemenciano, rugindo impropérios e obscenidades que não caberiam nem mesmo na boca do mais cínico dos sátiros. Ela correu e enfiou-se no açougue, clamando por ajuda; o Sr. Clemenciano, em sua carreira cega de ódio, esbarrou em mim com truculência, fazendo-me cair no meio da rua. Foi somente o tempo de erguer-me e entrar no açougue para que eu já encontrasse tia Diva acuada em um canto e o Sr. Clemenciano lançando-se sobre ela, aos berros de “tu és louca” e “vou te matar”. Eu não pensei nada, não posso afirmar nem mesmo que agi por reflexo, mas, quando vi, eu já havia apanhado o cutelo de cima do balcão e desferido um golpe de prancha, forte como eu nem imaginava poder, direto na nuca do Sr. Clemenciano. Pude ver o alívio nos olhos de tia Diva quando ele desmoronou de uma só vez, que nem árvore a ser lenhada. Ela começou a chorar, e dizia: “Ai de nós, Tomás; ele já sabe de tudo, não me contive e acusei-o dos assassinatos; se ele acorda, mata-nos!” Inexistia qualquer escolha, era uma questão de sobrevivência e de justiça. Agarrei-o pelos tornozelos, rezando para que não voltasse a si, e comecei a puxá-lo para o pátio, em direção ao defumador. Era um monstro, eu pensava, um monstro, e eu estava fazendo a coisa certa. Pedi a tia Diva que me ajudasse, por causa do grande peso, mas ela não queria, apenas chorava; foi quando ele começou a se mover, e ela própria, ao percebê-lo, acorreu e, ofegando em seu tremendo esforço, levou-o até a porta da câmara de defumagem. Ele ainda não tinha descerrado as pálpebras quando o colocamos lá dentro, mas, tão logo trancamos a porta por fora, ele começou a tossir; em seguida, vieram os gritos, alternando-se entre sentenças de ódio, juras de vingança e pedidos de clemência. Tia Diva, com as mãos em concha, cobria os ouvidos e repetia sem parar: “Eu não posso ouvir isso; por Deus, que acabe logo; eu não posso ouvir isso...” Espessos rolos de fumo fugiam pela chaminé, junto com os mugidos roucos do Sr. Clemenciano; decidi, então, abreviar o sofrimento e poupar a mim e tia Diva de escutar seus estertores: de uma só vez, puxei a alavanca e fiz descer a tampa sobre a abertura da chaminé, selando-a. Porém, era tarde para impedir que um odor acre, nauseabundo de chamusco, de gorduras fritas, de carnes sapecadas, se espalhasse pelo ar.</span></i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:12.0pt">O senhor entende, inspetor? Não havia outra saída. Clemenciano enlouqueceu quando ameacei entregá-lo à polícia. Apesar de tudo, eu asseguro que não me trouxe deleite algum assistir ao seu fim. Quanto às ossadas em nosso pátio, eu jamais poderia ter notado algo estranho, porque Clemenciano tinha esse costume de enterrar os despojos dos animais ali mesmo. Como eu poderia imaginar que, entre as carcaças, ele houvesse sepultado o pouco que restara daqueles meninos inocentes? Como? Talvez eu seja ingênua demais, porque, quando pequena, conheci um tio meu que era da polícia, trabalhou em muitos cantos da província, e ele sempre alertava: basta que um matadouro se instale no lugar para que os crimes ali aumentem, em especial os crimes de morte. Não sei, inspetor, mas deve ser verídico; não é apenas essa repetição monótona do ato de matar que, quase sem querer, pode se voltar do homem para o homem, é também algo sensorial, é a vermelhidão banal do sangue que vicia os olhos de quem vê, é o cheiro da carnificina que se dispersa com o vento e vai atordoar a cabeça das pessoas e atiçar o diabo que tem lá dentro.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><span style="font-size:16.0pt; font-family:Mistral">15 de novembro de 18** - Açougue fechado. O pior dos dias. Deixei Tomás cuidando do defumador desde cedo e, à tarde, fui ao porto despachar peças de carne para o interior. Fiz algumas compras, encontrei amigos e fomos beber em um armazém da Rua do Comércio. O sol já esmorecia quando tomei o rumo de casa. Vinha subindo o Beco do Poço quando, à distância, reconheci a silhueta de Diva cruzar pela Rua do Carmo. Ia célere, como quem não pode desperdiçar sequer um segundo porque vai de encontro ao inadiável. Segui-a até o Largo do Horto, onde estavam uns meninos que brincavam de funda, disputando para ver quem primeiro acertava os pardais que voltavam ao refúgio noturno nos galhos das árvores. A uns dez passos do grupo, Diva largou a cesta que carregava e quedou-se e observar. Um dos garotos enfim logrou atingir um pássaro e foi correndo catá-lo do chão. Para minha surpresa, pegou-o, quebrou-lhe e arrancou-lhe as pernas, desarticulou-lhe uma asa, soltou-o, rindo como se tivesse prazer em vê-lo esvoaçar miseravelmente, com uma asa só, arrastando a outra, pousando os cotos sangrentos na terra pedregosa da praça. E Diva impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Quando o menino cansou de brincar com os farrapos de vida daquele outro ser, chutou-o para um canteiro e, separando-se dos outros garotos, começou a andar para os lados do Hospital de Caridade. Ela, então, chamou-o e apontou a cesta ao seu lado; ele se chegou com rapidez, apanhou a carga e pôs-se a acompanhar Diva, que, estranhamente, se embrenhou no Beco do Quinto, lugar nada próprio para qualquer mulher honesta, ainda mais àquela hora, ao poente, em que as vias mais estreitas já soçobravam na escuridão. Quando ela o puxou para o sombrio vão formado entre um muro e a parede de uma casa, não tive coragem de mais me aproximar. Sequer foi preciso, porque eu já havia visto o bastante para entender e também porque, mesmo de onde eu estava, pude escutar haustos e gemidos, e a voz da Diva sussurrando que viesse todo, que a chamasse de mãezinha, que tocasse na sua mãezinha. Saí do beco sem sentir meus próprios pés, em tal estado de estupefação e nojo, que consegui andar apenas uns poucos metros antes de desabar atrás de uma sebe, onde me assentei para tomar fôlego. Não foram nem cinco minutos até que o vulto de Diva, sozinha, carregando outra vez a cesta, deixasse o Beco do Quinto. Era grande sim a vontade de ir tomar-lhe satisfações, de chamá-la das coisas mais vis, até mesmo de surrá-la; porém, maior ainda era o estado de confusão mental em que fiquei e que me fez vagar a esmo pelos arredores. Quando dei por mim, passava de novo pelo Beco do Quinto; agora, porém, havia ali uma grande movimentação: homens da polícia recolhiam um corpo, cercados por curiosos, e eu, acorrendo ao local, espremendo-me entre a gentalha, vi a carranca horrenda do morto, os olhos arregalados, a boca aberta em mutismo de asfixia. Contudo, o pânico proporcionado por essa visão foi apenas um débil reflexo do que senti ao reconhecer, a despeito da expressão transfigurada, o rosto do menino que Diva atraíra até o beco e ao encontrar ali, amarrado feito torniquete em seu pescoço, um lenço de bordado familiar. Quando cheguei em casa, ela ainda não estava. Aliás, ainda não retornou. Tremo ao imaginar por onde anda. Tomás já subiu duas vezes para falar comigo, disse que está no segundo cozimento do dia e pediu-me ajuda com a regulagem do braseiro. Creio que fui ríspido, mas ele não pode imaginar o que se passa. Afeiçoo-me a ele como a um filho, o filho que nunca tive e, hoje agradeço à providência, jamais terei com Diva.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><i><span style="font-size:12.0pt">Ontem, tia Diva chegou da chefia de polícia dizendo que tudo vai ficar bem. Perguntei a ela quando vamos deixar esta hospedaria e ir para casa; ela respondeu que logo sairemos daqui, mas não para o sobrado na Rua do Carmo, lá ela nunca mais quer pôr os pés. Falou algo sobre mudar de cidade. Depois, ficou horas calada em frente à lareira, jogando às flamas uns documentos, livros, cadernos. “Papéis dele”, explicou, sem falar o nome. “Que morra tudo com ele.” Antes de dormir, já acomodados na cama estreita que, nesta morada improvisada, somos obrigados a compartilhar, ela me abraçou, me fez afagos, e eu senti um conforto cálido como nunca antes. Fiquei ali, entorpecido pelo perfume almiscarado do seu colo e pela maciez da sua voz a me sussurrar: “Tu serás feliz aqui com tua mãezinha; tu gostas da tua mãezinha, não?” Nessa noite, tive sonhos bons. <o:p></o:p></span></i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="font-size: 100%; font-style: normal; font-family: Georgia, serif; "><i><span style="font-size:12.0pt"><o:p> </o:p></span></i></p><p></p>Rafael Bán Jacobsenhttp://www.blogger.com/profile/10584817415444028132noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-43176476060570402032011-10-21T08:08:00.000-07:002011-10-21T08:16:41.099-07:00Os mais invisíveis do mundo<p><span style="font-family:arial;"></span></p>
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<br /><p align="right"><span style="font-family:arial;">Leonardo Ortegal</p>
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<br />Eles estão entre nós. Não são os ET´s, e estão invisíveis. Não são pretos, nem putas, mas nos servem como escravos há séculos, e tem seus corpos atravessados, como objetos, para a satisfação de nosso desejo hedonista.
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<br />Eles são tratados do jeito que se trata as minorias: suas necessidades são subjugadas, suas dores, menosprezadas, e sua fragilidade se transforma em degraus para que passem em ascensão aqueles que detém o poder. Mas acontece que, como várias minorias, eles não são minoria. Na verdade eles já chegam a ser maioria, como uma manifestação epidêmica da nossa própria doença.
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<br />O Brasil é um país enorme, mas mesmo assim são muitos os homens que não possuem um teto para morar, ou um pedaço de chão para cultivar. Esse paradoxo se mistura a um outro, pois esse mesmo país que abriga 190 milhões de cabeças humanas, e deixa milhões sem ter onde dormir ou cair morto é o mesmo país que oferece terra, água, abrigo, alimento e assistência médica a mais 200 milhões de cabeças que não são humanas, mas são animais.
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<br />Animais não humanos, que vivem nas terras do mundo, e vem e vão como estalos errantes. Hoje se entra em setembro, e não passará o mês sem que morram aos milhares sem fim as galinhas ‘adultas’ que, ontem ainda, saíram do ovo. Tiveram suas vidas acachapadas, seus anos reduzidos a pobres semanas de clausura. Cruzaram o Brasil sobre rodas de enormes carretas, no vento, no sol, no frio e na chuva, e ninguém viu. Seus corpos banhados com óleo e queimados na chapa, servidos nos pratos, tragados aos tratos digestórios dos homens, e ninguém as notou. Setembro será mais um mês. Um rio Araguaia de sangue de aves correu no país, e que venha outubro em seus ventos de morte.
<br />Na Europa os homens têm bom coração. Se compadecem das barrigas em fome, e chegam a pagar ao Brasil para que faça mais soja - nem que para isso precise tornar em cinzas os verdes frondosos da nossa Amazônia. Barrigas tem fome e precisam comer. São vacas e bois aos milhares, que, desafortunados, não contam com o pasto abundante do nosso país. Mas contam com a soja abundante, com o cheiro da fumaça do cerrado que agora é deserto, e vai de navio até suas bocas. Comida importada. Até que não são tão invisíveis assim.
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<br />O mundo tem cheiro de diesel. Diesel e peido. O peido assassino que lhe queima os cabelos das narinas até pode ter vindo do seu colega de trabalho. Mas o peido potente, o metano que queima a camada de ozônio e transforma o planeta em estufa, é obra dos cus invisíveis. A usina de flato animal tem filiais espalhadas nos quatro cantos da terra, e consegue poluir os ares mais do que todos veículos a motor desse mundo, é o que dizem as Nações Unidas. Produção diuturna de gases invisíveis, só não tão invisíveis quanto os seus próprios emissores.
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<br />Decapitação, eletrocussão, esquartejamento, degolação. Vivemos o enredo de um filme de terror onde o sangue não é de tomate. Um festival doentio de mortes, cuja variedade e criatividade sádica põe catatônicos os mais bizarros roteiristas de todos os tempos. Caldeiras de água fervente para o mergulho dos vivos, serras para extirpar bicos, para extirpar testículos, máquinas de empurrar maisena e gordura de porco direto nos fígados, e um imenso triturador, para transformar os nascidos defeituosos, ainda vivos, em ração para os demais. São estes alguns dos itens da trama de Os mais invisíveis do mundo, o thriller que nunca saiu de cartaz, e que ninguém se propõe a assistir.</span> </p>
<br /><p></p>
<br /><p>(publicado também no jornal <a href="http://www.miraculoso.com.br/">O MIRACULOSO</a>)
<br /></p></span>ortegalhttp://www.blogger.com/profile/17872404423480422098noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-78893873851438332102011-10-14T15:48:00.000-07:002011-10-14T15:59:38.913-07:00Sabe de uma coisa?Sabe de uma coisa? Essa foto tem conteúdo impróprio. Alguns argumentariam: “é um absurdo!”; e mudariam para um sítio de pornografia pacífica e cristã. Outros, estupefatos, talvez empreendessem uma corrida frenética para a cozinha, em busca dos nuggets remanescentes, para realizar o bom e velho “croc-croc”. Certamente, esta imagem pode espremer os calos do pé esquerdo de um cidadão maravilhosamente ordinário. E, comumente, provocaria a ira de bastiões da “magnânima” evolução da espécie humana. Pintariam-me abjeto nos comentários: “Maldito vegan hipócrita!”; “Com certeza não tem mãe!”; “Tu és um exemplo de capitão fascista!”. E como vingança pessoal, engoliriam um bife a seco, sem mastigar e – logo após – exalariam gazes triunfantes de alegria, delirando em poema decorado: “Eu não ligo! Eu não ligo!”. <br /><br />E, depois, embevecidos de um aroma particular, voltariam para uma existência própria e financeiramente objetiva: o sono não remunerado. Como o sexo é vendido nas esquinas, o sono é a única capacidade inexoravelmente não-comercial do ser humano; não se pode vender, nem comprar. Ou se tem ou não tem; está com ele ou não está. É nele que vive o sonho, patético, algoz da realidade insuportável. Nesta atmosfera idílica, surge um desejo, impossível a todos os seres. O bastião da moralidade churrasqueira sugere para si, em sonho, um inexorável bife. Uma peça que simboliza quase um monumento em homenagem à baba que escorre no canto esquerdo da boca humana. E nesse filé, magnânimo em sua forma, não existe o azulejo branco como sangue, as tripas correndo para fora, o grito de dor. É uma peça inocente, mais doce que Marília de Dirceu e Inocência besuntadas em melado de cana. Irônica como uma mentira deve ser. Por mais determinado que seja o sujeito, ninguém sonha – nem mesmo o mais convicto dos defensores da supremacia humana – com um suposto abate orgástico e emocionante de um animal que agoniza. O sofrimento algumas vezes é o contra-senso do prazer, e o prazer é egoísta...Daniel Kirjnerhttp://www.blogger.com/profile/17675316358027126927noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-78263281049084610192011-09-25T17:31:00.000-07:002011-09-25T17:38:05.023-07:00“O Planeta dos Macacos”: confluências entre humanidade, racionalidade e opressão<!--[if gte mso 9]><xml> <w:worddocument> <w:view>Normal</w:View> <w:zoom>0</w:Zoom> <w:trackmoves/> <w:trackformatting/> <w:hyphenationzone>21</w:HyphenationZone> <w:punctuationkerning/> <w:validateagainstschemas/> <w:saveifxmlinvalid>false</w:SaveIfXMLInvalid> <w:ignoremixedcontent>false</w:IgnoreMixedContent> <w:alwaysshowplaceholdertext>false</w:AlwaysShowPlaceholderText> <w:donotpromoteqf/> <w:lidthemeother>PT-BR</w:LidThemeOther> <w:lidthemeasian>X-NONE</w:LidThemeAsian> <w:lidthemecomplexscript>X-NONE</w:LidThemeComplexScript> <w:compatibility> <w:breakwrappedtables/> <w:snaptogridincell/> <w:wraptextwithpunct/> 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janeiro, 1994) publicou o romance “La Planète des Singes” (“O Planeta dos Macacos”), obra de ficção científica que acabaria sendo mais conhecida do grande público através da sua adaptação cinematográfica de 1968, dirigida por Franklin J. Schaffner e estrelada por Charlton Heston. O livro de Boulle é um exemplo de crítica social por meio da distopia, isto é, trata-se de uma ficção cujo valor representa a antítese da filosofia utópica, descortinando alegoricamente mazelas humanas e sociais tais como a corrupção, o preconceito, a sede por poder, o totalitarismo e o autoritarismo. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Entre tantas possibilidades de leitura para o texto de Boulle, uma das mais ricas e menos debatidas é a crítica à dominação dos humanos sobre os animais não-humanos, especialmente no que diz respeito à polêmica questão da experimentação animal.<span style="mso-spacerun:yes"> </span></span></p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Resumidamente, o livro tem a forma de um diário de bordo escrito por um astronauta terráqueo chamado Ulysse Mérou, que, acreditando ser o último ser humano restante no universo, escreveu a sua história na esperança de que alguém a ache. Ele narra sua viagem até os arredores da estrela Betelgeuse, onde ele e seus companheiros de bordo descobrem haver um planeta muito similar à Terra, ao qual dão o nome Soror (“irmã”, em latim). Aterrissando no planeta, descobrem ser possível respirar-lhe o ar, beber-lhe a água e comer da vegetação local. Logo encontram outros seres humanoides no planeta, muito embora estes ajam primitivamente como chimpanzés e mostrem terrível aversão a instrumentos e objetos manufaturados em geral, razão pela qual atacam os astronautas recém-chegados, destruindo-lhes as roupas. De fato, é grande a surpresa dos terráqueos diante da “bestialidade” daqueles seres de aparência tão familiar:</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-tab-count:1"></span>Em algum momento durante a viagem, havíamos discutido nosso eventual encontro com seres vivos, e tínhamos vislumbrado com os olhos da mente criaturas monstruosas, disformes, com aspecto físico muito diferente do nosso, mas sempre imaginávamos, de modo implícito, a presença de uma mente. No planeta Soror, a realidade parecia ser bem o oposto: tínhamos de lidar com habitantes que se assemelhavam a nós em todos os aspectos físicos mas que pareciam completamente desprovidos do poder da razão. Esse era, deveras, o significado da expressão que eu havia achado tão perturbadora em Nova e que agora eu via nos demais: uma falta de reflexão consciente, a ausência de inteligência. </i>(BOULLE: 1966, p. 31)<i style="mso-bidi-font-style:normal"> </i></p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Uma interrogação que poderia inquietar Ulysse e seus companheiros de viagem frente a tal realidade é se esses seres, tão aparentemente humanos mas tão essencialmente esvaziados de tudo que, no senso comum, caracteriza o “ser humano” (linguagem, raciocínio, consciência), devem “contar como humanos”, ou seja, se esses seres devem, em tese, possuir o mesmo status moral dos homens civilizados que habitam a Terra. Dilema similar é colocado </span><span style="mso-fareast-language: PT-BR;font-size:12.0pt;" >pelo</span><span style="mso-ascii-font-family:Calibri; mso-fareast-font-family:Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman";mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";font-size:12.0pt;" > biólogo Richard Dawkins, em seu recente livro </span><span style="mso-fareast-language:PT-BR;font-size:12.0pt;" >“</span><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family: Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"; mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";font-size:12.0pt;" >Deus, um delírio</span><span style=" mso-fareast-language:PT-BR;font-size:12.0pt;" >”</span><span style="mso-ascii-font-family: Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri; mso-bidi-Times New Roman";mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";font-size:12.0pt;" >, no trecho em que</span><span style="mso-fareast-language:PT-BR;font-size:12.0pt;" > propõe uma interessante situação hipotética para</span><span style=" mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri;mso-hansi-font-family: Calibri;mso-bidi-Times New Roman";mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";font-size:12.0pt;" > analisa</span><span style="mso-fareast-language:PT-BR;font-size:12.0pt;" >r</span><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family: Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"; mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";font-size:12.0pt;" > </span><span style="mso-fareast-language: PT-BR;font-size:12.0pt;" >a “sacralização da vida humana” que é, muitas vezes,</span><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family: Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"; mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";font-size:12.0pt;" > t</span><span style="mso-fareast-language: PT-BR;font-size:12.0pt;" >omada como argumento por </span><span style=" mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri;mso-hansi-font-family: Calibri;mso-bidi-Times New Roman";mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";font-size:12.0pt;" >ativistas antiaborto:</span><span style="font-size:12.0pt;"> </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-fareast-language:PT-BR"><span style="mso-tab-count: 1"></span>(...) </span></i><i style="mso-bidi-font-style:normal"><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri; mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"; mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";" >imagine que uma espécie intermediária, o </span></i><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri; mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"; mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";" >Australopithecus afarensis<i style="mso-bidi-font-style: normal">, por exemplo, tivesse conseguido sobreviver e fosse descoberta numa área remota da África. Essas criaturas “contariam como humanas” ou não? (...) O absolutista (a favor da superioridade da vida humana) precisa responder à pergunta, para aplicar o princípio moral de garantir aos seres humanos um status único e especial, porque eles são humanos. No extremo, eles teriam que criar tribunais, como aqueles da África do Sul no apartheid, para decidir se um indivíduo específico deveria “passar como humano”.</i></span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family: Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"; mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";" ><span style="mso-tab-count:1"></span>Mesmo que se tente dar uma resposta clara para o </span></i><span style="mso-ascii-font-family: Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri; mso-bidi-Times New Roman";mso-fareast-language:PT-BRfont-family:";" >Australopithecus<i style="mso-bidi-font-style:normal">, a continuidade gradativa que é característica inescapável da evolução biológica diz-nos que tem de haver algum intermediário que fique suficientemente perto do “limite” a ponto de obscurecer o princípio moral e destruir seu absolutismo. Um jeito melhor de dizer isso é afirmando que não há limites naturais na evolução. A ilusão de um limite é criada pelo fato de que, por acaso, os intermediários evolutivos estão extintos. (...) O fato da evolução derruba de forma devastadora a discriminação moral absolutista. </i></span>(DAWKINS: 2007, p. 386-387)<span style="font-size:12.0pt;"></span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Entre tantas descobertas, os astronautas terráqueos não têm muito tempo para indagações e estabelecem-se com os humanos primitivos por alguns dias, na esperança de que possam civilizá-los, e Ulysse apaixona-se por uma deles, a qual passa a chamar de Nova. Porém, certo dia, uma inesperada situação se impõe, um acontecimento que ilustra de maneira ainda mais dramática o latente dilema das nebulosas fronteiras do humano: surge um grupo de caçadores na floresta, consistindo de gorilas, orangotangos e chimpanzés que se vestem como os humanos da Terra e usam armas e máquinas. Os caçadores alvejam vários dos humanos por pura diversão e capturam outros, inclusive o protagonista, o qual, analisando o comportamento dos símios, observa:</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-tab-count:1"></span>Eu havia acompanhado a mudança na sua expressão desde o momento em que foi alertado pelo ruído e registrei vários aspectos surpreendentes: antes de mais nada, a crueldade do caçador perseguindo sua presa e o prazer febril que obtinha desse passatempo; mas, sobretudo, o caráter humano de sua expressão – nos olhos desse animal, havia uma fagulha de entendimento que eu havia em vão buscado nos homens de Soror. </i>(BOULLE: 1966, p. 42)</p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>É digno de nota que, no texto, o “caráter humano” de um habitante de Soror apareça inserido em uma cena de violência, justaposto à perversidade, sinalizando que, talvez, a verdadeira essência do humano não seja pureza, nobreza ou qualquer qualidade elevada do espírito.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Enquanto a maioria dos humanos apreendidos pelos caçadores é vendida para trabalhos manuais, o protagonista e Nova acabam em uma instituição de pesquisadores que fazem experimentos sobre a inteligência humana. É apenas nesse momento que os questionamentos de natureza biológica e moral começam a perpassar a mente de Ulysse:</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="mso-tab-count: 1"></span><i style="mso-bidi-font-style:normal">Homens! De que raça eram então os seres que os macacos haviam matado e capturado? Algum tipo de tribo atrasada? Se era esse o caso, quão cruéis eram os soberanos desse planeta ao tolerar e talvez decretar tais massacres!</i> (BOULLE: 1966, p. 53)</p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>No centro de pesquisas, as habilidades e a capacidade cognitiva de Ulysse chamam a atenção da Dra. Zira, uma chimpanzé que ali trabalha como pesquisadora. Pouco a pouco, Ulysse revela a Zira todo o seu conhecimento e a verdade sobre sua origem. A partir de então, em segredo, Zira passa a ensiná-lo a língua símia e diversas coisas acerca do planeta dos macacos, sua história, sua política, sua ciência. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Em seus diálogos com Ulysse, Zira revela muito de como os macacos enxergam a si próprios, e essa autoimagem, idealizada e divinizada, é perfeitamente análoga à nossa concepção religiosa do “homem concebido à imagem e semelhança de Deus”:</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-tab-count:1"></span>‘O que você acha?’, ela disse. ‘O macaco é, obviamente, a única criatura racional, a única que possui uma mente e também um corpo. Mesmo os mais materialistas dentre os nossos cientistas reconhecem a essência sobrenatural da mente símia. </i>(BOULLE: 1966, p. 83)</p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Em dado momento, Ulysse conhece o noivo de Zira, chamado Cornélius, um cientista jovem porém muito conceituado. Embora os chimpanzés Zira e Cornélius estejam convencidos de que Ulysse é um ser racional, os orangotangos, que regem a sociedade, acreditam que ele finja entendimento da língua, porque a sua filosofia não permite pensar em humanos inteligentes. Com a ajuda de Cornélius, Ulysse consegue a oportunidade de fazer um discurso em uma conferência anual de biologia, diante de diversos cientistas, jornalistas e autoridades do mundo símio. Essa passagem do romance é especular e, portanto, complementar a</span><span style="mso-ascii-font-family: Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri; mso-bidi-Times New Roman"font-family:";font-size:12.0pt;" >o conto “Informação para uma Academia”,</span><span style="font-size:12.0pt;"> do escritor tcheco </span><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri; mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"font-family:";font-size:12.0pt;" >Franz Kafka (1883-1924)</span><span style="font-size:12.0pt;">, que narra a história de </span><span style="mso-ascii-font-family:Calibri; mso-fareast-font-family:Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"font-family:";font-size:12.0pt;" >Pedro Rubro, </span><span style="font-size:12.0pt;">um macaco educado que comparece perante </span><span style="mso-ascii-font-family: Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri; mso-bidi-Times New Roman"font-family:";font-size:12.0pt;" >os membros de uma academia para contar a história de sua vida, de sua ascensão de fera a algo próximo do homem. Com a figura de um macaco falante, de gravata-borboleta, smoking e com o bloco de notas da palestra em punho</span><span style="font-size:12.0pt;">, Kafka derruba a auto</span><span style="mso-ascii-font-family:Calibri; mso-fareast-font-family:Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"font-family:";font-size:12.0pt;" >proclamada fronteira que o homem estabelece entre si e as demais espécies de animais. Ao final de sua narrativa, o macaco Pedro Rubro, já perfeitamente humanizado e educado, reflete sobre a sua transformação e sobre o que ganhou com ela. Sua constatação é pouco alentadora para a espécie <i style="mso-bidi-font-style:normal">homo sapiens</i>. Ao conquistar tudo que julgamos relevante (conforto, reconhecimento, vida social agitada, um relacionamento conjugal), Pedro parece encarar tudo com um grande vazio – a vida humana em nada é mais valiosa do que a sua prévia vida simiesca:</span><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family:Calibri; mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"font-family:";" ></span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family: Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"font-family:";" ><span style="mso-tab-count:1"></span>Se com uma vista de olhos examino toda minha evolução e o que foi seu objetivo até agora, nem me lamento dela, nem me dou por satisfeito. Com as mãos nos bolsos da calça, com a garrafa de vinho sobre a mesa, recostado ou sentado a meias na cadeira de balanço, olho pela janela. Se chegam visitas, recebo-as como se deve. Meu empresário está sentado na antecâmara: se toco a campainha, acode e escuta o que tenho a dizer-lhe. De noite quase sempre há função e obtenho êxitos já mal superáveis. E se ao sair dos banquetes, das sociedades científicas ou das gratas reuniões entre amigos, chego à casa a horas avançadas da noite, ali me espera uma pequena e semiamestrada chimpanzé, com quem, à maneira simiesca, passo muito bem. De dia não quero vê-la, pois tem no olhar essa loucura do animal perturbado pelo amestramento; isso unicamente eu o percebo, e não posso suportá-lo. </span>. </i>(KAFKA: s/d, p. 105/106)<i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-ascii-font-family:Calibri;mso-fareast-font-family: Calibri;mso-hansi-font-family:Calibri;mso-bidi-Times New Roman"font-family:";" > </span></i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Ulysse, em seu discurso, percorre caminho inverso ao de Pedro Rubro, narrando as circunstâncias que o levaram da condição de criatura racional e civilizada a uma bestialidade imposta e da qual, através de seu depoimento, buscava escapar. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Após esse evento, tendo sua racionalidade reconhecida, Ulysse recebe roupas para vestir, é retirado de sua jaula, passando a viver em um quarto no centro de pesquisas e começa a auxiliar os chimpanzés em suas experiências com humanos. É então que Ulysse descobre que os experimentos que os macacos realizam vão muito além dos testes psicológicos de capacidade cognitiva e condicionamento: em Soror, os homens são utilizados em cruéis práticas de vivissecção. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-tab-count:1"></span>Aquele humano tivera toda uma zona da área occipital removida. Não podia mais distinguir a distância ou a forma dos objetos, uma inabilidade que manifestava através de uma série de gestos desordenados cada vez que uma enfermeira se aproximava dele. Era incapaz de desviar de um sarrafo colocado no seu caminho. (...)</i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-tab-count:1"></span>Com meu estômago pesando por essa sucessão de horrores acompanhados pelos comentários de um chimpanzé risonho, eu vi homens parcial ou totalmente paralisados, outros artificialmente privados da visão. (...)</i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-tab-count:1"></span>‘Aqui,’ ele disse com ar misterioso, ‘nós fazemos pesquisas mais delicadas. Não é mais o bisturi que entra em ação, é algo bem mais sutil – estimulação elétrica de certos pontos do cérebro. Desenvolvemos alguns experimentos notáveis. Vocês fazem esse tipo de coisa na Terra?’</i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style: normal"><span style="mso-tab-count:1"></span>'Sim, nos macacos!’ eu retruquei em fúria. </i>(BOULLE: 1966, p. 153) </p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>A fúria de Ulysse diante de tais práticas é imediata e pouco racionalizada; porém, o que há por trás desse sentimento nada mais é do que a percepção intuitiva de que aqueles humanos, mesmo privados de linguagem, de racionalidade, de plena cognição, possuem sensibilidade, capacidade de sofrer ou sentir prazer e de valorar tais experiências como boas ou más – elementos esses que condicionam direitos naturais tais como o direito à vida, à liberdade, à integridade física. A fúria de Ulysse é a manifestação primeira de uma aversão moral frente a uma prática antiética. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Pode-se dizer que, vivenciando o reverso da situação que ocorre no planeta Terra, onde macacos são vitimados em experimentos similares, Ulysse é forçado ao mais legítimo exercício ético, ou seja, colocar-se no lugar do outro, analisar a ação em questão e avaliá-la como boa ou má não do ponto de vista daquele que pratica a ação, mas sim da desprivilegiada posição daquele ser que sofre seus efeitos e consequências. Assim, Ulysse reaprende o que jamais poderia ter esquecido desde que encontrara os macacos racionais pela primeira vez, desde que os vira caçando impiedosamente os humanos: o planeta Soror não é um lugar amigável ou sequer seguro para seres humanos, assim como a Terra não é um lugar em que os animais não-humanos possam viver suas vidas com plenitude e liberdade. Seja em que lugar do cosmos for, o que restaria à racionalidade senão colocar a si mesma em um trono e, do alto dele, praticar dominação sobre todo o resto?</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>A partir daí, a trama se encaminha para seu desfecho. A tranquilidade e a segurança conquistadas pelo protagonista depois de seu discurso na conferência ficam ameaçadas quando as autoridades símias descobrem que a humana primitiva Nova, ainda confinada no centro de pesquisas, está esperando um filho de Ulysse, o qual, cogitam, sendo o início de uma potencial linhagem de humanos racionais, pode vir a constituir um perigo ao futuro da sociedade símia e seu domínio sobre os homens. <span style="mso-spacerun:yes"> </span></span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;"><span style="mso-tab-count:1"></span>Sem revelar detalhes do epílogo, cabe ressaltar que, até o final, o romance de Boulle consegue surpreender e entreter ao mesmo tempo em que suscita questionamentos filosóficos: de onde vem </span><span style="mso-fareast-language:PT-BR;font-size:12.0pt;" >a resistência que nós, indivíduos da espécie <i style="mso-bidi-font-style:normal">homo sapiens</i>, temos em aceitar que somos apenas animais e que tantos outros animais são tão moralmente relevantes quanto nós mesmos?<span style="mso-spacerun:yes"> </span>Negar a existência dessa dimensão que se pode denominar “racionalidade”, “alma” ou “psiquismo” nos animais não seria uma forma de exercício de poder e mecanismo de dominação, assim como já foi perpetrado por nós, humanos, contra outros grupos humanos? Quão íntima é a relação entre “humanidade”, “racionalidade” e “opressão”?</span><span style="mso-fareast-language: PT-BR"> </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="mso-fareast-language: PT-BR"> </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><b style="mso-bidi-font-weight: normal"><span style="mso-ansi-language:EN-US; mso-fareast-language:PT-BRfont-size:12.0pt;" lang="EN-US" >Referências:</span></b></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="mso-ansi-language:EN-US;mso-fareast-language:PT-BRfont-size:12.0pt;" lang="EN-US" >BOULLE, Pierre. <b style="mso-bidi-font-weight:normal"><i style="mso-bidi-font-style: normal">Monkey Planet</i></b>. Harmondsworth: Penguin Books, 1966. </span></p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style=" mso-fareast-language:PT-BR;font-size:12.0pt;" >DAWKINS, Richard. <b style="mso-bidi-font-weight: normal"><i style="mso-bidi-font-style:normal">Deus, um delírio</i></b>. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><span style="font-size:12.0pt;">KAFKA, Franz. <b style="mso-bidi-font-weight:normal"><i style="mso-bidi-font-style: normal">A Colônia Penal</i></b>. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/d. </span></p>Rafael Bán Jacobsenhttp://www.blogger.com/profile/10584817415444028132noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-2811601794076566842011-02-11T19:14:00.000-08:002011-09-26T12:56:21.224-07:00Vozes Vegetarianas na Literatura: Coetzee<p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify">Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2003, o sul-africano John Maxwell Coetzee faz eco à ideia defendida por <a href="http://resistenciavegana.blogspot.com/2010/01/vozes-vegetarianas-na-literatura.html">Bashevis Singer</a>, outro laureado, de que os homens escravizam, torturam e exterminam em massa os animais, assim como os nazistas fizeram com os judeus. Tal concepção surge em diversos trabalhos seus. O exemplo mais óbvio é o livro “A Vida dos Animais”.</p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify">Convidado a proferir uma palestra na Universidade de Princeton, o escritor surpreendeu sua audiência. Em lugar de um ensaio teórico, ele leu esta inquietante narrativa sobre a relação entre os homens e os animais. O romance é protagonizado por uma escritora, Elizabeth Costello, que, assim como Coetzee, se prepara para um ciclo de conferências e discorre sobre as questões filosóficas e éticas que envolvem o nosso trato com os animais. Num bem articulado jogo entre ficção e realidade, teoria e prática cotidiana, Coetzee nos conduz por questionamentos sobre a vida e a razão. A prosa inflamada de Elizabeth Costello, vegetariana radical, faz uma polêmica analogia entre o abate do gado bovino e o holocausto nazista. As resistências às suas idéias começam em ambiente familiar. Hospedada na casa do filho, ela tem que contrapor suas convicções ao dia-a-dia da família.</p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify">Talvez a porção final do texto, em que Elizabeth Costello faz um doloroso desabafo ao seu filho, seja a mais primorosa síntese que dele próprio se possa fazer:</p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style:normal">Aparentemente, eu me movimento perfeitamente bem no meio das pessoas, tenho relações perfeitamente normais com elas. É possível, me pergunto, que todas estejam participando de um crime de proporções inimagináveis? Estou fantasiando isso tudo? Devo estar louca! No entanto, todo dia vejo provas disso. As próprias pessoas de quem desconfio produzem provas, exibem as provas para mim, me oferecem. Cadáveres. Fragmentos de corpos que compraram com dinheiro. É como se eu fosse visitar amigos, fizesse algum comentário gentil sobre um abajur da sala, e eles respondessem: 'Bonito, não é? Feito de pele judaico-polonesa, é o que há de melhor, pele de jovens virgens judaico-polonesas.' E aí eu vou ao banheiro, e a embalagem do sabonete diz assim: 'Treblinka – 100% estearato humano'. Será que estou sonhando, pergunto a mim mesma? Que casa é esta? E não estou sonhando, não. (...) Calma, digo para mim mesma, você está fazendo tempestade em um copo d´água. Assim é a vida. Todo mundo se acostuma com isso, por que você não? Por que você não?<o:p></o:p></i></p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style:normal"><br /></i></p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify">Vegetariano convicto, Coetzee já afirmou:</p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style:normal"><br /></i></p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align:justify"><i style="mso-bidi-font-style:normal">Sim, sou vegetariano. Acho bastante repulsiva a ideia de rechear minha garganta com fragmentos de cadáveres e me surpreende ver quanta gente o faz todos os dias. </i></p>Rafael Bán Jacobsenhttp://www.blogger.com/profile/10584817415444028132noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-992863297628608592011-01-03T11:44:00.000-08:002011-01-03T11:46:46.455-08:00Um Ano BomPense no sujeito mais abjeto com que você já cruzou. Ele é egoísta, maldoso, tenta passar a perna em todos, é invejoso, intriguento, mesquinho, sem escrúpulos, só visa se dar bem acima de qualquer coisa. Pensou? <br />Agora pense no seu oposto. Alguém que contém em si toda a simplicidade, a despretensão, quer tão somente viver sua vida sem prejudicar ninguém, sem desejar o mal, sem o praticar. Alguém inteligente, mas que só utiliza sua inteligência para sobreviver em um mundo injusto. <br />O primeiro, sem dúvida, pertence à espécie humana e, embora não simbolize a humanidade toda, assume predicados nada difíceis de se encontrar nela. O segundo é um porco e "encarna", nessa descrição, os principais predicados de sua espécie. <br />Há mais diferenças entre eles. O primeiro, daqui a algumas horas, na festa em que comemora mais um ano de vitórias e em que deseja mais sucesso para si no ano que inicia, encomendará o cadáver do segundo e o comerá, crendo em superstições vãs que só a sua espécie é capaz de criar, apesar de se vangloriar do uso da razão. <br /> <br />É meio improvável, mas não custa desejar: <br />que o ano novo seja bom apenas para os bonsUnknownnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-51927378304416031332010-12-23T17:22:00.000-08:002010-12-23T18:02:53.902-08:00Poema para a noite de natal<span style="font-family: arial;">Escrevi um poema para o natal, e pensei em compartilhar por aqui, como contribuição para esse espírito de congraçamento e respeito que emana dessa época, e também para as reflexões que sempre são feitas nos momentos de virada de ano, quando a Terra está no mesmo lugar em que esteve há pouco menos de um ano. Sem mais delongas.</span><br /><br /><br /><span style="font-weight: bold;">Poema para a noite de natal<br /><br /></span> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Olharei atentamente o céu da noite de natal</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Buscarei no escuro vasto o rastro da estrela guia</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Ansiarei por percorrer seu percurso celestial</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Se de fato ela brilhasse, por onde me levaria?</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" ><span style="text-decoration: none;">Transitou</span></span><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" > oculta em nuvens no Setor Comercial</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Entre errantes ao relento na noite erradia</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Ofuscou ante os letreiros do Conjunto Nacional</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Que iluminam o coração contraditório de Brasília.</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><br /></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Desviou do abatedouro da zona rural</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Com rubor ao ver o sangue que jorra da estrebaria</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" >Congelou presa ao pinheiro plástico artificial</span></p> <p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" ><span style="text-decoration: none;">Se apagou</span></span><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" > quando notou a manjedoura estar vazia.</span></p><p class="western" style="margin-bottom: 0cm; line-height: 100%; font-family: arial;"><span style="font-size: 11pt;font-size:85%;" ><br /></span></p> <br /><div style="text-align: center;"><span style="font-family: arial;font-size:100%;" >Leonardo Ortegal</span><br /></div>ortegalhttp://www.blogger.com/profile/17872404423480422098noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-90534102189972369712010-12-10T18:16:00.000-08:002010-12-10T18:23:26.605-08:00Vozes Vegetarianas na Literatura: Brian Aldiss<!--[if gte mso 9]><xml> <w:worddocument> <w:view>Normal</w:View> <w:zoom>0</w:Zoom> <w:trackmoves/> <w:trackformatting/> <w:hyphenationzone>21</w:HyphenationZone> <w:punctuationkerning/> <w:validateagainstschemas/> <w:saveifxmlinvalid>false</w:SaveIfXMLInvalid> <w:ignoremixedcontent>false</w:IgnoreMixedContent> <w:alwaysshowplaceholdertext>false</w:AlwaysShowPlaceholderText> <w:donotpromoteqf/> <w:lidthemeother>PT-BR</w:LidThemeOther> <w:lidthemeasian>X-NONE</w:LidThemeAsian> <w:lidthemecomplexscript>X-NONE</w:LidThemeComplexScript> <w:compatibility> <w:breakwrappedtables/> <w:snaptogridincell/> <w:wraptextwithpunct/> <w:useasianbreakrules/> <w:dontgrowautofit/> 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Um de seus livros de contos mais conhecidos é “Superbrinquedos duram o verão todo”. Neste volume, encontramos os dois contos que serviram de base para "A.I. - Inteligência Artificial", o famoso filme de ficção científica de Steven Spielberg lançado em 2001, a partir de um projeto de Stanley Kubrick, sobre a possibilidade da criação de máquinas com sentimentos. Nesse mesmo volume de contos, podemos ler um interessante texto intitulado “Carne”. Nele, é apresentada a visão apocalíptica de uma realidade futura em que a exploração dos animais e a criação de rebanhos cada vez maiores acabaram por arruinar o equilíbrio ambiental do planeta, culminando com a proliferação de doenças entre os próprios animais, o que ocasionou a extinção de todo rebanho bovino e 99% do rebanho ovino.</p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><span style=""> </span>O impacto ambiental da criação industrial de animais para consumo humano é fato. E esse fato é literariamente descrito nas seguintes passagens do texto;</p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"> </p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><span style=""> </span><span style=""> </span><i style="">(...) quarenta por cento da terra agriculturável do país estava sendo usada no plantio de forragem para os animais que eram abatidos e exportados. Uma outra porção das terras era empregada no plantio de soja – exportada para alimentar o gado do Primeiro Mundo. (...)</i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><i style=""><span style=""> </span>A imagem anódina que os Carnívoros apresentavam ao mundo mostrava o gado pastando placidamente em verdes campinas. Isso já se tornara uma fantasia muito antes do fim. A verdade é que aquelas criaturas sensíveis – não apenas o gado bovino, como também o ovino, os porcos e os galináceos – já não eram mais animais e sim meras unidades de produção de carne, destinadas a percorrer o trajeto até os estômagos glutões do Ocidente da maneira mais rápida e barata possível.</i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><i style=""><span style=""> </span>Para manter essas unidades produtoras de carne saudáveis em sua curta existência, elas eram abarrotadas de penicilina. De tal forma que os antibióticos foram ficando cada vez mais ineficazes em sua tarefa de curar uma população cada vez mais doente. População cujo hábito de se empanturrar de carne acelerou o ritmo das doenças. </i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"> </p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><span style=""> </span>A última linha do conto, diante de tal quadro, nem tão distante de nossa atual realidade, infelizmente não pode ser taxada de panfletária ou exagerada:</p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"> </p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><span style=""> </span><i style="">Carne Faz Mal a Você. Ela Fez Mal ao Planeta Todo. <span style=""> </span></i></p>Rafael Bán Jacobsenhttp://www.blogger.com/profile/10584817415444028132noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-46303742109303005202010-11-10T19:53:00.000-08:002010-11-10T20:34:26.390-08:00Lenço Vermelho<div style="text-align: justify;">Olá leitores do Resistência.<br /><br />No dia de hoje farei um post diferente. Estive em Porto Alegre para o Congresso da SVB. Chegando lá, deparei-me com a semana farroupilha, um desfile público de homofibia e especismo que me colocou sensibilizado de tal forma que não conseguia tirar algumas imagens da cabeça. Por isso, compus uma música sobre esta experiência q hoje posto aqui no Blog. Perdoem a falta de qualidade do vídeo, pois esta experiência é totalmente caseira.<br /><br />Espero que gostem.<br />Forte Abraço!<br /></div><br />Lenço Vermelho<br />(Daniel Kirjner)<br /><br />Ah, esta herança farroupilha<br />reza vísceras que escorrem pelas mãos.<br />Há tempos esta guerra foi perdida<br />mas os corpos ainda jazem pelo chão.<br /><br />Sonhos desfilam fantasiados<br />celebrando uma nação que não nasceu.<br />Na Pólis defensora do Estado,<br />rapina de seus farrapos prometeus.<br /><br />Eu vi um galo fantasiado,<br />preso com arames pelo calcanhar.<br />Rasgavam em tortura sua carne<br />para ele ser modelo de fotagrafar.<br /><br />Uma ovelha estava tão machucada<br />e sonhava qualquer água para beber.<br />Buscando um resquício de bondade<br />sobre pasto que teimava em não nascer<br /><br />Ah, triste senhor, fiel combatente farrapo.<br />Não vês que o lenço é da cor do sangue de teus animais?<br /><br /><br /><br /><br /><iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dyegMDalab1edaYUIHzZ1GihnGVNCP6cWy2tGDleSx2Mk-8TOQ03lldyOtb0-iafUR-cqg0LNKuFg_bybDhIA' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe>Daniel Kirjnerhttp://www.blogger.com/profile/17675316358027126927noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-12890539659790905872010-11-05T15:19:00.000-07:002010-11-05T15:32:39.166-07:00O velho e um porco<!--[if gte mso 9]><xml> <o:officedocumentsettings> <o:relyonvml/> <o:allowpng/> </o:OfficeDocumentSettings> </xml><![endif]--><!--[if gte mso 9]><xml> <w:worddocument> <w:view>Normal</w:View> <w:zoom>0</w:Zoom> <w:trackmoves/> <w:trackformatting/> <w:punctuationkerning/> <w:validateagainstschemas/> <w:saveifxmlinvalid>false</w:SaveIfXMLInvalid> <w:ignoremixedcontent>false</w:IgnoreMixedContent> 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morte do grande Barry Horne, como um lembrete a todos nós de que sempre podemos fazer mais, mesmo encarcerados, mesmo quando tudo e todos parecem estar contra nós. Um cumprimento vegano a todos meus colegas de blog e a todos os abolicionistas ativistas pelo mundo afora. Força e coragem, companheiros de luta! Segue um pequeno conto nessa sexta-feira tão significativa. Espero que gostem. Beijos vegans ;*</span><br /></p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><br /><span style="" lang="PT-BR"> A cena se repetia todas as sextas. Era como se tivessem esquecido ligado o botão de repetir. Nada mudava, nada se acrescentava nem retirava. Eram sempre o velho e um porco qualquer; o primeiro vivo e o segundo morto, sempre. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O porco gratinado e com uma maçã vermelho-sangue na boca. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O velho... Bem, o velho, velho; a pela enrugada e frágil como a imitar papel de seda molhado.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O velho era extremamente pálido e o porco extremamente mulato, alteravam a coloração cadáver / vivo, o leitor deve ter notado.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">A louça de porcelana fina e talheres de prata davam a impressão de que o velho esperava alguém. Mas era só isso mesmo, impressão. O único que lhe fazia companhia era o porco, era também o único com quem o velho conversava, embora nunca respondesse, é obvio. Não que o velho realmente se importasse...</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Deverias orgulhar-se de estar à minha mesa! Que cara mais inexpressiva!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">A rotina, que terminava com o velho e o porco à mesa, começava sexta de manhã, quando o velho saia de casa para ir ao açougue. Vestia terno e sapatos lustrados, ignorando a falta de classe de usá-los em uma estrada de terra como aquela.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O açougueiro não perguntava, não cumprimentava. Conhecia o velho de longa data. Looooonga data, desde a época em que era menos velho. O valor era sempre o mesmo, a compra sempre muda e monótona. Dinheiro. Pacote com o porco. Troco. Nota fiscal. Sino da porta anunciando a saída do velho.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Devo parar de narrar a irritante rotina das sextas feiras do velho, pois, se meus recursos literários não falham, esta é uma narrativa muito chata e o leitor já deve estar entediado.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Dizem que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, eu digo que água mole -se for esperta- em pedra dura tanto bate até que muda o curso e dá a volta na pedra. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Esta história muda de curso numa sexta-feira, que não era 13 nem de lua cheia, acredito, pois foi um dia de bastante sorte para o velho e para um porco. Vamos aos fatos.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Terno. Sapatos lustrados. Estrada de terra. Açougue. Tudo igual até aí.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- O homem não pôde vir. Está cumprindo pena de um dia na cadeia. Semana que vem está de volta.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O velho, se não fosse pela artrite, teria pulado para trás com o susto de ouvir a voz do açougueiro. Não era mudo, afinal.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Que homem? – perguntou depois de um tempo</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- O algoz, carrasco, abatedor, encapuzado... Sei lá como o chamavam na sua época.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Parou para pensar, o velho. Julgava-se esperto mas não via motivo para aquela quebra de silêncio por parte do açougueiro.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- E então?</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Então, o quê? O homem não veio, não tem porco!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Se fosse possível, o velho teria ficado mais pálido que já era:</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- O curral é nos fundos que bem sei. Mate um bicho, pago o dobro se for preciso.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Eu não! Não, senhor! Quem mata é o homem. Eu só fatio e vendo. Não me sujo de sangue nem pelo dobro nem pelo triplo.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Cinco vezes mais, que seja.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O açougueiro considerou a proposta. O velho esperou.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Por cinco vezes, leva o bicho vivo. Mas matar, eu que não mato.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Irritado, mas sem alternativas, o velho acabou concordando em pagar cinco<span style="background: none repeat scroll 0% 0% yellow;"></span> vezes o preço habitual por um porco vivo. Arrumaram um sisal tosco e improvisaram uma coleira. O açougueiro demorou um pouco para conseguir agarrar um dos rabinhos cor-de-rosa que corriam fazendo o maior estardalhaço. O velho, impaciente, pagou e saiu segurando o sisal com as duas mãos, o porco não passava dos 30 centímetros de altura, mas era um bicho forte e não se brinca com o jantar, muito menos quando ele pode derrubá-lo no chão.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O porco virou as orelhas ao ouvir o sino da porta, e depois cheirou cada grão da estrada de terra. A curiosidade do bicho estava atrasando o velho e ele não gostava disso. Considerou matá-lo ali mesmo, assim não teria sangue para limpar e nem porco para aturar. Porém, tomada a decisão, notou que não tinha um facão e continuou andando e xingando, andando e xingando.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">A viagem pareceu durar mais, culpa do bicho, o velho sabia. Amarrou-o na varanda de frente e foi para a cozinha buscar um facão, o maior que encontrasse. Custou achar. Teve de afiá-lo para facilitar o trabalho.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O porco não estava lá, na varanda. O velho amaldiçoou-se por não ter feito mais forte o nó. O passado ao passado, decidiu, e foi procurar o porco.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Voltou quase toda a estrada de terra. E depois foi na direção oposta. Por fim, sem sucesso, decidiu que um porco não valia tamanho esforço e a rotina que se quebrasse uma vez, oras, escolha é que não tinha.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Em casa, decidiu descansar os pés para agüentar uma nova caminhada pela manhã. Queixar-se-ia na prefeitura a pouca eficiência do açougue. Ah... se ia!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><span style="" lang="PT-BR"><span style=""> </span>Tirou o terno, os sapatos lustrados e foi até o quarto.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><span style="" lang="PT-BR"><span style=""> </span>Quase enfartou. Por um momento, imaginou que realmente tinha enfartado, estaria morto, e tudo faria, pois, sentido. Era o inferno, só podia ser. Bem ali, em cima de seu edredom de marca, de seu colchão de marca, estava o porco, e dormia.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><span style="" lang="PT-BR"><span style=""> </span>- Bicho estúpido! – até cuspiu saliva de tão bravo, o velho<span style="background: none repeat scroll 0% 0% yellow;"><br /></span></span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><span style="" lang="PT-BR"><span style=""> </span>O porco deu um salto que o fez fincar as unhas no edredom. O velho podia sentir seu fedor mesmo àquela distância. Imaginou se seria possível enforcá-lo, pois merecia morte mais lenta que um simples facão no pescoço.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Porcaria de animal nojento! Deverias orgulhar-se de estar à minha mesa!<br /></span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">E, como se fosse mágica, o “um porco qualquer” pela primeira vez respondeu:</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Róin-róinc!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">É, o inferno... era mesmo o inferno. O velho desejou não ter comido tanta gordura em vida, assim não teria enfartado e não estaria ali, com um porco insolente respondendo-lhe os insultos.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Ainda bem que ainda tens o sisal no pescoço! Será mais fácil pendurá-lo na...</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Róin-róin! Roinc!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O velho respirou fundo e esticou o braço para alcançar o bicho, ignorando o fato de ter sido interrompido por um porco. O porco empurrou as mãos dele com o focinho gelado e sentou-se na cama, bufando irritado.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Ora, pois, quem haveria de acreditar? Estava sendo desafiado por um jantar! Um jantar e nada mais do que isso!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O velho já rangia os dentes preparando-se para uma nova investida quando o porco pulou da cama e saiu correndo. Correu até um canto do quarto e grunhiu virado para o velho perplexo. A cabeça mexendo de cima para baixo como se propusesse um duelo.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Antes que o velho pudesse alcançá-lo, já disparava novamente. O porco correu entre as pernas dele, num oito bem feito e, num pulo, parou sentado na cama de novo.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Então o velho compreendeu. Era uma brincadeira! O bicho estúpido não passava de um filhote tonto que queria brincar. Talvez não tivesse enfartado, no fim das contas, era apenas muito azarado.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Enquanto pensava o que faria com “aquilo”, cometeu o erro mais grave possível, aquele que todo abatedor considera regra número um: nunca olhe nos olhos!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O velho olhou. Olhou e viu.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Lá estavam elas, duas azeitonas brilhantes que piscavam para ele. Eram tão expressivas... tão vivas... tão ingênuas... tão... tão inocentes.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Droga, pensou.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Aproximou-se mais devagar. O porco não se mexeu. Cada passo que dava o velho era uma nova conquista. Mas o porco não parecia mais querer brincar. O velho finalmente estava perto suficiente.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Um estalo forte fez-se ouvir.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Era o tapa que o velho dava naquela bunda rosa e suja de barro do próprio jantar.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Ande, bicho estúpido! Já lhe tirei o sisal e abri-lhe a porta! Foge logo, que a sorte lhe sorriu! </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Bateu mais uma vez, e o porco só se mexeu o suficiente para retomar o equilíbrio.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Que mais espera que eu faça?! Comida não tenho que tu eras meu jantar!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Róin-róinc!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O porco novamente empurrou a mão do velho, dessa vez foi como se implorasse para não apanhar mais. Droga de bicho estúpido.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Bateu mais uma vez. A própria mão latejou de dor. O porco não se mexeu.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Fique aí então. Azar o seu!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">O velho deu de ombros e decidiu jantar a maçã vermelho sangue que teria usado para enfeitar o porco. Depois trataria de expulsar o bicho da casa.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Lavou a maçã, secou-a, preparou a louça e os talheres. Quando voltou à mesa derrubou a garrafa de vinho que levava. Sentiu o sangue subir-lhe à cabeça e o queixo cair. Sentado em <i style="">sua</i> cadeira, da <i style="">sua</i> sala-de-jantar, da <i style="">sua</i> casa, estava o porco estúpido!</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Balançou a cabeça, fatiou a maçã em dois, sentou-se em outra cadeira e ceou na agradável companhia do porco... vivo.<br /></span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Descobriu mais tarde que tratava-se de uma porca, fêmea. Deu-lhe um nome. Banhou-a, enfeitou-a com um laço no pescoço, comprou um travesseiro cor-de-rosa sob medida. </span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">E as coisas continuaram a ser como sempre...</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Ou quase como sempre. Eram agora, todos os dias, o velho e um porco, o primeiro vivo e a segunda também. Aliás, o primeiro mais vivo do que nunca, pois, se prestar atenção, o leitor há de notar um leve e discreto sorriso em meio àquela face de papel de seda molhado. Quem dera aos porcos terem ao menos uma chance de responder os comentários numa mesa de jantar. Quem dera aos porcos terem a chance de fazer-se ver aquelas azeitonas brilhantes e inocentes.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">Quem dera também a todos os velhos do mundo ter a chance de cear em companhia do próprio jantar... dessa vez, vivo e agradecido... ou viv<b style=""><i style="">a</i></b> e agradecid<b style=""><i style="">a</i></b>, para fazer jus também às fêmeas.</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">“Talvez realmente tenha enfartado...”, concluiu finalmente o velho, “...mas esqueceram de mostrar-me o caminho ao inferno. Esse é sem dúvida o paraíso."</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Não concorda, minha cara?</span></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify; text-indent: 0.5in;"><span style="" lang="PT-BR">- Róinc-róinc! – e a porca abanou o rabicó rosado, contente e viva, como um filhote de porco deve ser</span></p>Giovanna Chinellatohttp://www.blogger.com/profile/05042924654764518163noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-59034811593944711572010-11-03T12:48:00.000-07:002010-11-03T12:56:11.826-07:00AMIGOSNão é que eu seja um apreciador de acampamentos masculinos, mas os caras me convidaram e eu não tinha mesmo aonde ir, há anos ando por aí sem ter o que fazer e então fui. Não fiz nada do que eles faziam: pescavam, falavam de mulheres, de proezas, e, pior, falavam de futebol, eu não entendo nada de futebol e assim, enquanto o assunto prosseguia cada vez mais edificante, e eles bebiam suas cervejas, tiravam peixes da água do riozinho, alguns dos quais devolviam à água depois, outros iam se debatendo para uns baldes, xingavam-se quando alguém falava alto demais, eu fui recolhendo umas folhas e fazendo diferentes chás, experimentando seus sabores, olhando para meus amigos e me sentindo... distante deles. Não fisicamente distante, porque nem gosto de andar muito no mato sem companhia, mas ocorre que a fala deles ia me dizendo cada vez menos respeito, até que me joguei ao chão, próximo à fogueirinha e tirei um cochilo, embalado por sussurros que mencionavam calcinhas, pênalties, juízes que roubam, técnicos bundões e mulheres que se fazem de difíceis. <br />Acordei e eles ainda estavam por ali, nem tinham percebido um barulho que vinha do mato. Se fosse um acampamento na América do Norte, eu pensaria que um urso, atraído pelo fogo e pela possibilidade de um lanche fácil, vinha nos visitar. <br />Mas era uma vaca. <br />A vaca surgiu por entre as moitas, distinguiu-me dos demais, me olhou de um jeito profundo, eu gostei desse jeito dela, me levantei um pouco porque também quis ficar alerta, vá que fosse um touro e disparasse, pisasse em cima de mim, era bom estar esperto, foi quando ela me disse: <em>sou uma vaca, seu tolo</em>. Não gostei de ela ter me chamado de tolo assim de cara, para em seguida me dar conta de que havia alguma coisa de muito errado em uma vaca falar comigo. Há que observar que ela tinha um jeito doce de me chamar de tolo, um tom de voz... herbívoro. Olhei para os caras, e eles seguiam fazendo tudo igual, nem notaram a vaca, já estavam mesmo bem bêbados e eu tive que perguntar a ela como é que, sendo um animal, conseguia falar. Não pareceu achar relevância na minha questão, mas mudou o tom de sua fala e disse que precisava de ajuda. Eu não sou um cara mau, ajudo quem me pede um troco no sinal, crianças desamparadas, mendigos solitários, homens que foram chutados pelas mulheres, pelos patrões e até pelos filhos, mulheres abandonadas, velhos sem família. Nunca pensei em ajudar uma vaca, mas não é por isso que deixaria de me esforçar. Perguntei o óbvio, o que ela precisava e ela contou que estava para ter um filho. Dei um pulo, não gostei nada da ideia, detesto sangue, jamais seria bombeiro, policial ou taxista justamente para não ter que atender partos, foi a primeira coisa que me ocorreu de dizer, e ela respondeu: Não seja estúpido, faço meus partos sozinha. Já tive onze filhos, nunca ninguém os viu nascer. Não gostei de ser chamado de estúpido, mas gostei de ter sido tranqüilizado quanto ao resto: só de pensar na grossura do cordão umbilical a ser cortado, na quantidade de sangue e no tamanho da placenta que ela talvez pudesse me pedir para enterrar, já me embrulhava o estômago. <br /><em>Nada disso</em>, ela continuou. <em>Meu filho vai nascer e eu preciso de ajuda é depois. Não quero que mais um filho meu vire vitela, quero ser livre e dar liberdade a ele, e por isso preciso de um homem, porque não tenho alicate para cortar cercas</em>. Ah, era só isso, cortar cercas pode ser tão fácil, não sei mesmo como touros, cavalos e tantos bichos se mixam para uns fiozinhos de arame. Fui até a camionete, passei por cima de dois corpos roncantes ao lado de garrafas vazias, me certifiquei de que tinha as ferramentas e, ao voltar, a vaca tinha desaparecido. Cogitei de ter sonhado, pensei nos chás de folhas estranhas que havia ingerido e tratei de voltar a me deitar. Não sei quanto tempo passou, mas já havia cantos de pássaros e uma cor azulada na noite, quando tomei um chute na barriga. Levantei de um salto e ali estava a amiga e seu filhote. Então era tudo verdade, havia uma vaca, e a vaca cumpria tudo o que prometera, o bezerro ali, de pé, todo lambido, como guri do interior no primeiro dia de aula. Ele me achava tão esquisito quanto eu achava toda aquela história. A vaca falou sorrindo: <em>os meninos têm seus amigos imaginários, depois crescem e deus é o amigo imaginário dos homens grandes. Eles não suportam viver sozinhos a dura realidade que criam para si e para os outros, não aceitam a ideia de viver num pó do universo.</em> Ok, ok, a vaca me considera um tolo estúpido idiota, mas não precisa me atacar com filosofias. <br />Ninguém mais ouvia a vaca, percebi que a voz dela entrava direto no processador do meu córtex. Então, amiguinha, qual é nosso próximo passo? Qual é o teu grande problema de ficar na fazenda? É tudo tão bonito aqui, esse silêncio do campo...<br /><em>Ficar na fazenda? A minha vida na fazenda se resume ao seguinte: fico horas com as máquinas nas tetas me sugando até fazer feridas. Entopem-me de químicas cancerígenas para produzir mais, apesar de que o câncer vai para os homens que então apelam noite e dia para o amiguinho imaginário, que não os leve para junto dEle (são amigos de seus deuses, mas querem ficar aqui, longe deles). Para que eu sempre tenha leite, me inseminam artificialmente, sabe como é, né? Não tem nenhum touro por perto, que me escolha, que me namore, eu nem sei quem é o pai dos meus filhos. Mas eles nascem, e depois que eles nascem, mal bebem o colostro e são tirados de mim. Seus gritos de dor me perseguem noite e dia, eles me chamam e não podem me escutar. Eu também grito. Eles são levados para o mais estúpido dos confinamentos, preparam-se para ser vitelas</em>.<br /><br /> Ohh, carne de vitela, saborosíssima, tenríssima. Vejo a moça, tão chic, sentada com seu lindo vestido no restaurante igualmente chic, aonde só vão pessoas dignas, ricas, cheias de bons modos e de bom gosto: ela crava o garfo no pequeno pedaço de músculo do meu pequeno filho que não chegou a conhecer a luz do dia, que passou seis meses fechado num cubículo, impedido de se movimentar para não endurecer os músculos e para a moça dizer: que carne maciiiiiiia, derrete na boca! O rapaz a sua frente diz: eu gosto também, mas prefiro quando tem mais sangue no molho. Tem que cuidar o colesterol, ela diz preocupada com a saúde do namorado, a gente deveria comer mais peixe e carne branca, mas vitela, acho que vitela também é bom. <br />Vi toda a cena, não só essa do casal sofisticadinho, mas pensei nos peixes que meus amigos deixaram afogar-se no ar, nos churrascos que fazemos todo mês, nos bifinhos e guisadinhos do dia a dia, foi duro então olhar para a vaca, saber que toda aquela ânsia por viver e salvar seu filho iria ter fim quando a enfiassem num brete, sua cabeça sobre a bunda das outras, tentando buscar um ar no alto, uma visão privilegiada do que haverá na frente, o olho arregalado, a certeza da dor e do fim. Ela respondeu tentando me tranqüilizar: <em>nós vamos conseguir</em>. Olha aqui, eu lhe disse, tudo bem que estamos falando assim de cabeça a cabeça, mas vamos combinar que as coisas que eu “falo”, você escuta, mas as que eu “penso” são só minhas, tá bom? <br />Peguei o alicate, peguei um serrote e, por pura precaução, uma espingarda que eu não tinha a menor ideia como usar, mas que poderia impressionar a vaca e lhe dar confiança. Para onde vamos? <em>Atravessar o rio</em>, ela disse. Olhei para o barquinho dos meus amigos e não concebi como vaca, bezerro e eu caberíamos ali. <em>Bobão, eu vou nadando</em>. Sempre me ofendendo, sempre me ofendendo. Apesar de que bobão até que é meio carinhoso, não me importei tanto e era bom saber que as chances de morrer afogado diminuíam, eu não sei nadar. O bezerrinho foi atrás da mãe e eles chegaram antes de mim. Entramos na mata, andamos até o dia ficar bem claro. Cortei três cercas, subimos e descemos, nos embrenhamos em corredores, saímos em descampados, deitamos enquanto o danadinho tomava leite. Cheguei a pensar em pedir uns golinhos, mas ela já não ouvia os meus pensamentos conforme o combinado e então eu tomei água do rio. A indireta funcionou, e ela me disse: <em>adultos não precisam de leite, leite é alimento de bebês e para isso cada bebê tem a SUA mãe</em>. Eu também entendi a indireta, os bebês não deveriam tomar o leite das OUTRAS mamães. É isso que fazemos com as vacas: tomamos-lhes o leite. Tomar é um verbo que tem dois sentidos e os dois sentidos fazem sentido no que se refere ao leite das vacas. <br />Ia tudo muito bem, nós já tínhamos andado muito, atravessado muitas fazendas. Como uma tal história poderia ter um final feliz? Está claro que não poderia. Uma camionete se aproximou de nós em alta velocidade, mandou que parássemos, nós somos pacíficos, um homem tolo-estúpido-bobão, uma vaca gorda e dócil, um recém-nascido cansado. Os homens desceram do carro e nos examinaram. Interessaram-se mais pela minha amiga, reconheceram a marcação de suas ancas, reconheceram a cabanha, me ignoraram completamente e trataram de a atar à camionete. Pedi-lhes que, por favor, não fizessem isso, ela estava cansada, não conseguiria acompanhar um carro, que o bebê estava sem forças. Eles não me ouviam e seguiam a atando, falavam de outros assuntos, riam, fumavam. Arrancaram o carro e ela não conseguia andar, ia arrastada, o bezerro correndo atrás da mãe, em desespero. Tomei-me de fúria, decidi ser forte nem que fosse nos meus momentos finais. Arremeti-me contra um deles que ficara a pé, engatilhei a espingarda e me pus a disparar. Alguns deles correram, e em minutos, não eram mais três, mas passavam de vinte e vinham contra mim. Sem saber manusear a arma, errei muitos tiros, mas matei uns três ou quatro. Depois lutei corporalmente e acreditei ter quebrado um ou dois pescoços. Fui ficando cada vez mais forte, batia em um, em outro. Os da camionete voltaram para acudir os companheiros e a essa altura eu também já não tinha forças. Deixei-me cair e olhei pela última vez para a vaca, e ela então se pôs a me agradecer: <em>não lute mais por mim, já foi tão bom assim, isso que eu aprendi com os homens de ter amigo imaginário me deu forças para chegar até aqui, morrerei lutando para ser livre, tenho um filho que sabe que não sou eu a abandoná-lo. Obrigada, muito obrigada... por nesta noite ter sido meu amigo imaginário. </em>Unknownnoreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-72456549056425686572010-11-03T12:33:00.000-07:002010-11-03T12:34:25.729-07:00DiferentesUma porca asseada<br />Um papagaio discreto<br />Uma lesma eficiente<br />Uma galinha fiel<br />Um cavalo gentil<br />Uma anta inteligente<br />Uma serpente bondosa...<br /><br />Animais<br />decididamente<br />não são como genteUnknownnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-50750970592318046662010-10-24T14:40:00.000-07:002010-10-24T14:45:31.624-07:00Korban.<br /><div style="text-align: justify;"><span style="font-style: italic;">Korban é a palavra hebraica para "holocausto" ou "sacrifício". Os sacerdotes da religião judaica, até o ano 70 d.C., realizavam sacrifícios de animais no Templo de Jerusalém. Ainda hoje, outras tantas religiões seguem realizando matanças de animais. Até quando?</span><br /></div><br /><br /><div style="text-align: center;"><span style="font-weight: bold;">Korban</span><br /></div><br /><!--[if gte mso 9]><xml> <w:worddocument> <w:view>Normal</w:View> <w:zoom>0</w:Zoom> <w:trackmoves/> <w:trackformatting/> <w:hyphenationzone>21</w:HyphenationZone> <w:punctuationkerning/> <w:validateagainstschemas/> <w:saveifxmlinvalid>false</w:SaveIfXMLInvalid> <w:ignoremixedcontent>false</w:IgnoreMixedContent> <w:alwaysshowplaceholdertext>false</w:AlwaysShowPlaceholderText> <w:donotpromoteqf/> <w:lidthemeother>PT-BR</w:LidThemeOther> <w:lidthemeasian>X-NONE</w:LidThemeAsian> <w:lidthemecomplexscript>X-NONE</w:LidThemeComplexScript> <w:compatibility> <w:breakwrappedtables/> <w:snaptogridincell/> <w:wraptextwithpunct/> <w:useasianbreakrules/> <w:dontgrowautofit/> <w:splitpgbreakandparamark/> <w:dontvertaligncellwithsp/> <w:dontbreakconstrainedforcedtables/> <w:dontvertalignintxbx/> <w:word11kerningpairs/> <w:cachedcolbalance/> </w:Compatibility> 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Seu caminhar tem o ritmo imposto pelo puxar da corda que traz amarrada ao pescoço, e quem assim o guia é Iochanan, o mesmo Iochanan que, certo dia, muito cedo, indo ao pátio buscar lenha para o fogo, encontrara a ovelha a lamber a única cria daquela sua primeira parição, o Iochanan que, então, muito afoito, voltara aos pulos para o interior da casa, anunciando ao pai e à mãe o que, para ele, era um acontecimento dos mais extraordinários, desses capazes de roubar o sono e povoar a mente de indagações por vários dias: de onde viera a substância necessária para que se fizesse a partir do nada? Se tinha um balido tão estridente, por que não se ouvia na época em que ainda estava dentro da barriga? E era, de fato, um balido dos mais agudos o que se escutava quando Iochanan, dando voltas no poço, punha-se a correr atrás do recém-nascido ou quando, ao contrário, era ele que saltitava atrás do menino, desajeitado e aprendiz. A mãe o repreendia, que deixasse o filhote quieto, mas Iochanan tinha certeza: eram exclamações de contentamento. Quando, enfim, se cansavam, gostava de pegá-lo no colo e sentir a lanagem amena e clara, como só podem ser as coisas que ainda não se contaminaram com o mundo. <span style=""> </span><span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Apesar de sonolentos, os dois andam rápido, seguindo os peregrinos mais à frente, pois assim exige a expectativa de Iochanan: quer logo contemplar a cidade, conhecer o templo, entender o que lá acontece. Conforme dissera o pai às vésperas da partida, havia completado treze anos e, por isso, já podia realizar serviços religiosos junto com os homens da casa. Vais conhecer o sagrado, assim lhe falara. <span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Súbito, os olhos de Iochanan descobrem que ver Jerusalém significa ver o templo, e ver o templo é o mesmo que ver Jerusalém, pois a enorme edificação, ocupando um ponto elevado da paisagem, reflete, em seu mármore branco, a luz rascante da aurora e, com isso, espalhando inescapáveis cintilâncias rubras, ofusca todas outras construções dentro dos muros da cidade, fazendo com que pareçam nada mais do que pedras soltas e sem forma. O pai de Iochanan ergue o braço, indicando o destino; a caravana, fôlego renovado, avança.</span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >A manhã é pouco mais que uma promessa; mesmo assim, pessoas ganham as ruas, e muitas se deslocam em direção ao templo, como se dele proviesse um mistério imantador. Enquanto, mesmerizado, atravessa as estreitas vias, sobre as quais se debruça o velho casario ocre, Iochanan quase deixa escapar o cordeiro, que, de repente, como se algo o espantasse, traciona a corda e projeta-se para o lado. O menino o detém a tempo, abaixa-se e, afagando-lhe a cabeça, tenta tranquilizá-lo. Em meio ao burburinho crescente, escuta, então, a voz do pai, o qual, dezenas de passos adiante, percebendo o atraso do filho, o chama com insistência.<span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >O grupo, que congrega membros da família de Iochanan e outros homens da aldeia onde moram, perto de Cafarnaum, alcança a muralha sul do templo, onde está o portão principal. Assim, de perto, tudo é ainda mais esplendoroso, mal cabe no olhar, e o garoto surpreende-se ao perceber que não mentiam ou sequer exageravam os mais velhos quando contavam que a construção era ornada com ouro e prata e tampouco quando afirmavam que as duplas colunatas pareciam não ter fim. Logo na entrada, um homem alto, vestido de branco, com um uma mitra de mesma cor e uma faixa escarlate amarrada à cintura, achega-se ao pai de Iochanan. Durante a conversa, mais de uma vez, Iochanan nota que o pai olha para trás, em sua direção, e, em certo momento, talvez julgando que a discrição já não fazia mais sentido, aponta para o filho ou – assim pensa o menino – para o pequeno cordeiro que se roça em suas pernas, balançando o rabo. Iochanan aproxima-se um pouco, aguça os ouvidos e escuta algumas palavras esparsas ditas pelo pai e seu interlocutor: oferenda pacífica, é preciso verificar se não há defeito algum, o banho ritual. O pai vira-se de novo para trás e gesticula a Iochanan para que se aproxime. O menino faz menção de amarrar o cordeiro a um pilar, mas o pai, de imediato, com novo sinal, indica que o traga junto. Mais uma vez o filhote parece relutar; entretanto, cede à força daquele que o vem conduzindo a dias, assim como Iochanan obedece às instruções paternas. O homem de branco fixa o olhar no cordeiro, coça a longa barba, e assim permanece por vários segundos; abaixa-se, então, para ver de perto o focinho, as ventas e as orelhas. Eu o entrego de volta nas escadarias, na subida para o pátio, diz ele, enfim, enquanto se afasta, levando consigo o animal, que, agora, traz as patas rijas, negando movimento. Iochanan chega a dar alguns passos acompanhando-os; porém, logo sente a mão do pai cair sobre o ombro: vem, meu filho, precisamos nos purificar. </span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Encontram, mais adiante, naquele pavimento, grandes tanques de água límpida onde, separadamente, homens e mulheres imergem, proferem bênçãos ancestrais e põem-se a esfregar, com as mãos atormentadas, cada palmo da pele, como se dela quisessem expurgar não apenas o suor abundante e a poeira do deserto, mas também a memória de todas as imundícies que, desde os humores uterinos, a haviam conspurcado. Iochanan já não enxerga o cordeiro, tampouco o homem de branco. Enquanto, imitando o que fazem os demais, despe as principais peças da vestimenta, ficando somente com a fina túnica de linho, e desce os degraus que levam à água, o menino olha mais uma vez ao redor, procurando o filhote. Nada, apenas uma confusão de pernas a preencher o interminável corredor. Nesse instante, Iochanan se desconcerta ao aperceber-se de que seria incapaz de reconhecer as feições do homem de branco, pois não havia olhado o seu rosto, algo o impedira, e, agora, só agora, ele descobre: esse algo era medo. <span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Saem do banho. Os homens da caravana estão agora mais circunspectos, trocam poucas palavras, devem estar preparando o espírito para a adoração, adivinha Iochanan, enquanto sente a água já a evaporar, aniquilada pelo ar quente e seco. Tudo está bem, e o pensamento lhe escapa em um murmúrio. Gosta de ouvir isso e repete várias vezes, à guisa de prece. </span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Sente alívio quando, de fato, junto a uma ampla escada, reencontra o cordeiro. O homem de branco está com ele; Iochanan, todavia, mais uma vez, não tenta lhe mirar as faces. Ao devolver o animal ao pai de Iochanan, passa-lhe algumas instruções que o menino não compreende, mas tudo parece corriqueiro para o pai, que assente a cada observação do estranho. Quando o homem se afasta, o garoto pede ao pai que o deixe conduzir o cordeiro. </span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >No alto da escadaria, chegam a um pátio. O sol tomou conta do firmamento com inesperada presteza, e, no amplo terreno aberto, já estão numerosos vendedores com suas mesas. Em meio à algazarra e sob o olhar dos soldados do Império, eles trocam as várias moedas que os fieis, vindos de todas as partes, trazem e apregoam cordeiros, cabras, pombos. Para que servem todos aqueles animais?, pergunta-se Iochanan. Não tem tempo para elaborar uma resposta, pois uma sensação de frio nubla-lhe a mente quando vê um vendilhão de dedos rudes e nodosos agarrar, dentro de uma gaiola lotada, duas pombas miúdas, que tentam em vão abrir as asas, e passá-las a uma velha ansiosa que, sem cuidado algum, as joga em um saco de estopa e, então, expõe os cacos amarelados dos dentes, sorrindo em agradecimento.<span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Neste pátio, Iochanan depara com vários homens trajados da mesma forma que o homem de branco. Andam de lá para cá, passam orientações aos peregrinos. São os sacerdotes, compreende. Não tinha enxergado o rosto do primeiro, mas, agora, vendo um exército deles, percebe que são todos o mesmo: idênticas barbas agrisalhadas, idêntica altivez, idêntica urgência de movimentos e – assustador – idêntico semblante. </span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >O pai está de novo ao seu lado e começa a explicar, apontando um prédio austero, retangular, cujo topo aparece mais adiante, por detrás de muros: a casa de Deus, o coração do templo, fica ali, mas, para chegar até lá, temos de atravessar mais muros, cruzar outros pátios – o recinto sagrado, onde arde eternamente o candelabro de sete braços, precisa ser protegido. <span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Transpondo mais um portão, sobre o qual avisos entalhados nas pedras alertam aos gentios que permaneçam afastados, sob pena de morte, chegam ao pátio reservado aos hebreus, onde ainda se permite a circulação das mulheres. Contudo, ali não permanecem, pois o destino é o mais interno dos pátios públicos, o pátio dos homens. Nele, a quantidade de pessoas é bem menor; porém, mesmo assim, o caos reina. Dirigem-se ao fundo, onde há um enorme portão de bronze entalhado, cujas folhas semiabertas permitem entrever, finalmente, a morada de Deus. Mais longe, no entanto, não podem ir; dali em diante, apenas os sacerdotes. </span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Salta à vista de Iochanan o grande altar quadrado que ocupa quase todo o espaço além do portão de bronze, bem em frente à entrada do coração do templo; estranha os moirões de pedra e as argolas de ferro que jazem ao pé da estrutura e as fogueiras que crepitam sobre ela. O menino escuta alguém comentar: sempre me contaram que, por graça do Criador, este espaço das oblações não tem mau cheiro e tampouco atrai as moscas. Então, Iochanan compreende, e a revelação ganha força com uma lufada mais intensa de ar que lhe atira um odor nauseabundo nas narinas. Será possível que não sintam? Será possível que tenham viajado todos esses dias para algo assim? Por impulso, espia o cordeiro ao seu lado, e este lhe responde fitando-o com olhos líquidos. A mão do menino fraqueja ao segurar a corda. <span style=""> </span><span style=""> </span><span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Um sacerdote se aproxima com a mão esticada, solicitando que lhe passe a corda. Iochanan não se move; mal consegue respirar ao ver aquele fantasma diante de si, o presságio funesto que encarna. Impaciente, o pai toma o cabresto e o entrega ao novo homem de branco, o qual, de imediato, conduz para dentro o cordeiro e o amarra em uma argola entre dois daqueles moirões, que mais parecem lápides. Iochanan cerra as pálpebras, não quer testemunhar a barbárie que se anuncia, mas fica repetindo-se, na obscuridade, a última cena capturada pelas pupilas: o cordeiro tentando manter a cabeça erguida, gemendo feito uma criança, balindo e esticando a língua cinzenta. Iochanan fica assim por um instante que parece esgarçar-se indefinidamente, tentado fingir que não está ali, mas os sons não param, e, por isso, não há como cessar o pesadelo. Decide enfrentar, precisa fazê-lo, é tão culpado do que está prestes a acontecer quanto todos os outros que o cercam. Não pode fugir. Abre os olhos. <span style=""> </span></span><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" ></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >O cordeiro ainda está ali deitado, agora mais silencioso, quase imóvel, a não ser por sacudir nervosamente o rabo curto e os lados se alçarem com mais rapidez que de costume. O sacerdote baixa gentilmente, sem esforço, a cabeça levantada, ergue, com a mão direita, uma faca de lâmina reluzente, grita uma bênção e, girando o braço em arco para fazê-la cair sobre a vítima, corta-lhe a garganta. O animal treme, o rabinho endurece e para de abanar. Escancara a boca, mas berro algum se ouve, pois irrompem as trombetas rituais, tocadas pelos sacerdotes perfilados junto à entrada do habitáculo de Deus. Cada estertor do cordeiro abatido provoca em Iochanan um igual tremor nas entranhas. Enquanto o sangue se derrama em profusão, o pequeno corpo se recusa a aceitar qualquer justificativa ou desculpa, resiste, e parece discutir com o Criador até o último alento. </span><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Os olhos aquosos do cordeiro agora são vidro. Opaco. </span><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" ></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Deseja contemplar o sagrado, sentir a paz e a misericórdia de que falam os hinos entoados; porém, ante o horror, Iochanan enxerga apenas o monocromatismo monstruoso de uma nuvem vermelha que lhe barra a visão, e invade-lhe a certeza lancinante de que são apenas palavras ocas, repetidas por automatismo, e que sobem aos céus junto com a fumaça negra das piras para encontrarem idêntico destino: perecer ao vento, na diluição irredimível do que é apenas humano, cruelmente humano.<span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Depois, o animal tem a pele arrancada, o tronco aberto e as entranhas retiradas. As vísceras escorrem, feito cobras arroxeadas se enredando cegamente pelo chão. Um sacerdote asperge o sangue recolhido em uma vasilha dourada pelos quatro cantos do altar, e outros seis pegam os despojos e, correndo, os carregam para cima, atirando-os à gula do fogo alto das piras. O cheiro de carne queimada engrossa o ar. <span style=""> </span><span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Se existe um Deus bom, então até a mais humilde das coisas vivas deveria ser salva, reflete Iochanan enquanto se dirige à saída, junto com os demais; se Deus é bom somente com os fortes, se não há justiça para os mais frágeis, para aqueles que sequer têm voz, para as pobres criaturas que são oferecidas em sacrifício à humanidade, então não existe esta tal benevolência, esta tal justiça. O menino sente uma dor insuportável nas têmporas. Um suor gelado escorre pelas costas. </span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Os homens da caravana agora conversam amenidades e riem. Como é possível?, brada o espírito de Iochanan. Será possível que nada sintam? Para seu desespero, então, o pai se aproxima, trazendo um sorriso e uma pergunta: como te sentiste, meu filho? Estás feliz por conhecer o sagrado? </span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >A voz do pai está distorcida, a frase termina em um zumbido. Iochanan tenta falar, mas a boca se resseca, e um engulho torce-lhe o estômago; sente que os joelhos estão ainda firmes por milagre, que seus músculos parecem, agora, tão moles quanto as vísceras do cordeiro morto. Na convulsão que, a muito custo, tenta conter, no paroxismo daquele asco, ouve repetida a indagação, agora mais áspera: não me dizes nada, Iochanan? Não enxergaste a Deus no santo templo? <span style=""> </span><span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" >Abaixa os olhos, responde que sim e começa a vomitar.<span style=""> </span><span style=""> </span></span></p> <p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;font-size:12pt;" > </span></p>Rafael Bán Jacobsenhttp://www.blogger.com/profile/10584817415444028132noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-28031527608188182412010-10-24T14:21:00.000-07:002010-10-24T14:31:07.916-07:00Quando eles chegaram<p><br /></p><p style="text-align: justify;">O que aconteceria se alienígenas invadissem nosso planeta e resolvessem fazer conosco tudo o que fazemos com os animais não-humanos? Como seria estar do outro lado dessa história? </p><div style="text-align: justify;"> </div><p style="text-align: justify;"> Essa é a pergunta (tão velha quanto inquietante) que busquei responder neste conto. Boa leitura!</p><p><br /></p><p align="center"> <b>Quando eles chegaram</b> </p> <p align="right"> <i>O sistema de baias isoladas é bastante eficiente para o confinamento das unidades. Todavia, os seres dessa espécie – para utilizar uma terminologia própria deles –, por terem desenvolvido rudimentares formas de arte, comunicação e interação social, podem sofrer de grande apatia, adoecer e definhar se completamente privados de tais elementos, o que, sem dúvida, acarreta perdas na produção. Para contornar esse problema, algumas soluções triviais: reprodução de sons variados no ambiente, uso de celas com mecanismo de estimulação tátil e olfativa programada ou mesmo o fornecimento de material simples para escrita. O bem-estar das unidades produtivas deve ser sempre a preocupação maior. </i> </p> <p align="right"> <i>Manual de Técnicas de Manejo e Abate<br />Versão Beta<br />Volume XIII – Humanos<br />Ano 2167 (tempo terrestre)</i></p><p align="right"><i><br /></i> </p> <p style="text-align: justify;"> Quando eles chegaram, estávamos juntos em nosso quarto, o dia querendo tingir de laranja a transparência úmida das taças de champanhe, a minha-pele-tua, o redemoinho branco dos lençóis. Estás ouvindo?, perguntaste, erguendo a mim teus olhos enevoados de sono. Sim, eu disse, tantos gritos aí fora, parecem todos loucos. A pressão de tuas unhas nos meus ombros antecipou a pergunta: será que eles chegaram?<br />Liguei o hológrafo, e a imagem que dominou o aposento, engolindo, com suas cores, o relevo dos móveis, não deixava, tamanha a clareza, espaço para qualquer esperança de equívoco ou dúvida confortável: era um imenso geóide, pousado na esplanada em frente ao Palácio do Governo Central, cercado por uma multidão de curiosos a se acotovelarem e por soldados das tropas especiais, protegidos em suas armaduras de quartzo polimerizado e carregando pesados rifles a laser. Sim, eles haviam chegado.<br />Não eram boatos, tampouco uma conspiração anti-governista, como afirmavam as autoridades, as notícias espalhadas nos últimos dias, dizia o repórter. O anúncio feito por observatórios astronômicos independentes a respeito da aproximação do objeto não identificado confirmava-se agora de modo irrefutável. Ali estava, tangível, o delírio dos inimigos do sistema; ali estava, destruindo o gramado da maior praça da capital do planeta Terra, a mentira dos acadêmicos universitários que, atuando em áreas como exobiologia, buscavam justificar captação de recursos para suas pesquisas; ali estava, em intensas cintilações de âmbar, à primeira luz do dia, a inventividade dos autores de ficção científica. <br />Em pânico eu te senti; por isso te abracei.<br />Não há exagero em dizer que o planeta parou quando eles chegaram. Acompanhávamos as notícias segundo a segundo, enlaçados sobre o colchão, querendo acreditar que era apenas mais um filme tolo ou, melhor, que os excessos do amor na noite passada haviam induzido um sono abissal do qual ainda não tínhamos despertado. Nunca antes eu havia me sentido testemunha da história, nem mesmo quando instaurou-se o Governo Central após a Terceira Guerra, nem mesmo quando, a seguir, nossa cidade foi escolhida a capital. E não importa se vou viver mais dois dias ou cem anos (cem anos, impossível, o destino não pode ser tão pérfido): jamais esquecerei as palavras que, em nossa língua, ecoaram da nave por toda a esplanada e, dali, foram transmitidas para todo o mundo.<br />Não temam! Em paz e em segredo, os visitamos por muitos séculos e, agora, também em paz, nos revelamos. No universo, somos vizinhos; na caminhada evolutiva, somos irmãos. Trazemos nossos ensinamentos e buscamos a acolhida neste planeta, pois muitos dos erros que hoje aqui são cometidos nós também já cometemos. Não temam, pois ainda há esperança. Trazemos a boa nova.<br />Contrariando as expectativas, eram muito parecidos conosco, apenas mais altos e sem pêlos. No encontro com o Grande Líder e os conselheiros da Liga das Nações, mais detalhes: vinham de um planeta em galáxia não catalogada ainda pelos terráqueos, um planeta dividido pelas guerras e condenado à morte pela inépcia e arrogância de seus habitantes. Atingira tal ponto a degradação daquele pequeno mundo – sete vezes menor do que a Terra, declararam –, que os sobreviventes tiveram de colonizar outro planeta e lá reiniciar sua civilização. A mesma tecnologia responsável por tanta destruição havia lhes concedido uma segunda chance. E, nessa nova etapa, foram lançados também novos alicerces, explicaram; não queriam ver repetida, nem em seu novo planeta e nem em outro, a catástrofe que, por um triz, não os havia dizimado.<br />Quando eles chegaram, tu insistias em dizer que algo não ia bem. Não importava que eles, em pouco tempo, tivessem conseguido debelar, com seu alerta e sua diplomacia, os últimos focos de tensão armada no oriente, que eles houvessem convencido as autoridades a destruírem as bombas de pósitrons ainda guardadas em arsenal, que eles estivessem, gradualmente, entrando em nossa sociedade, fundindo-se a ela, e conosco compartilhando sua notável tecnologia, capaz de produzir e executar muito mais com muito menos demanda energética, não, nada disso importava; vinhas a mim, beijavas minha boca – um beijo trêmulo, um quase-suspiro –, e falavas: isso não está bem.<br />Quem poderia concordar com essa tua visão até aquela noite?<br />De madrugada, fomos acordados pelo soar de alarmes em toda a cidade. Pela janela do apartamento, vimos, pouco depois, o firmamento incendiar-se com a luz dos inúmeros geóides que irrompiam aqui e ali, dissolvendo a escuridão; as últimas nesgas de céu noturno eram pontas de gelo negro agonizando em meio à fúria da lava escarrada por um súbito vulcão. No hológrafo ligado às pressas, um repórter pálido, em cenário de batalha, tentava dominar o pavor para informar que eles haviam deflagrado um motim contra os humanos, os quais, por sua vez, pacificados por conveniência, não tinham como se defender. Milhares de naves se aproximavam da Terra naquele instante. Antes de a imagem tridimensional desaparecer numa torrente de chiados e interferências, o repórter conseguiu ainda dizer: eles estão aprisionando os humanos e se utilizando do nosso próprio sistema de transporte para conduzir os cativos até um lugar ignorado.<br />Tu caíste de joelhos diante de mim, cingindo minhas pernas, e sussurrando o que, mais do que um desejo, era uma súplica lançada ao vazio: se é para morrer, quero morrer contigo. Os gritos já ecoavam mais alto do que os alarmes, e cada vez mais próximos, subindo as escadas, avançando pelo corredor. Deixei-me cair também. De repente, estrondos, e, na porta do quarto, dois vultos gigantescos, um relâmpago e mais nada.<br /><br />Pesadelo superpovoado de vozes, uma nuvem de calor – sim, era o inferno. Eu sei, chorava alguém, sei o que vão fazer: vão nos transformar em comida, em cobaias. Por quê?, indagava uma pessoa mais rouca. O que fizemos?<br />Abri os olhos. Embora inconsciente até aquele momento, estava quase de pé no vagão abarrotado, e tu, por milagre, bem ao meu lado, ainda de pálpebras cerradas, o corpo mole oscilando com os movimentos caóticos daquela cáfila humana uniformizada na desgraça. O veículo perdia velocidade, parando. Passei meus braços ao redor do teu tronco e, mesmo nunca tendo acreditado em Deus, rezei para que tu não despertasses.<br />Porém, não foi assim. As portas da cabine se abriram, e tu retornaste exatamente quando eles chegaram.<br />Eram centenas contra as poucas dezenas de nós que saíam de cada vagão. Forçavam nossos passos adiante, por um estreito corredor, utilizando hastes metálicas que, a longa distância, emitiam centelhas elétricas. No tumulto, foi inevitável a separação: chamei teu nome, forcei os olhos na penumbra e, tendo, enfim, de aceitar a derrota, ainda juntei o que restava de mim e gritei uma jura de amor inútil, sufocada pela agonia de tantos. Naquele instante, não só a jura era em vão, o próprio sentimento tinha valor algum, impotente no confronto com a tragédia. <br />Cada indivíduo foi trancado em uma cela solitária, tão minúscula que as únicas opções são permanecer sentado ou deitar. Aqui neste galpão sem abertura alguma ao exterior, são centenas, talvez milhares delas, separadas em andares e baterias. A luz artificial, acesa o tempo todo, apenas varia em intensidade; tantas vezes me peguei rangendo dentes, sacudindo a cabeça e, quase em transe, implorando que ela se apagasse ao menos por um minuto. A temperatura aqui varia bastante e sem alternância lógica, como se as quatro estações disputassem perpétuo jogo de forças. Tudo programado, tudo para nos manter estimulados. Têm a mesma finalidade o papel e o lápis que me dão, e também esses sons que asfixiam: pássaros de mentira, chuva eletrônica, trovões computadorizados, ruídos diversos, fantasmas de uma realidade na música intermitente. Nenhum barulho, todavia, consegue se sobrepor aos gemidos dos prisioneiros e, menos ainda, ao trinado constante das correntes e engrenagens da Máquina. É assim que eles a chamam: a Máquina.<br />Sua estrutura de um anacronismo cruel ocupa toda a ampla área central do galpão. Começa em um trilho, ao longo do qual correm os ganchos em que as vítimas são presas pelos pés, de cabeça para baixo, uma procissão macabra de improváveis morcegos. Dali, chega-se à serra rotatória, peça responsável pela decapitação. As cabeças, não sei bem por quê, não são aproveitadas e, por isso, caem direto em um incinerador de detritos posicionado logo abaixo da lâmina. A próxima seção da Máquina é o tanque de escalda, um tonel de líquido em ebulição, onde são mergulhados os corpos para facilitar a posterior retirada da pele (infelizes aqueles que, em seu instinto de sobreviver, tentam se balançar ou dobrar o tronco para escapar da serra, pois acabam, muito feridos mas ainda conscientes, encontrando seu fim nesse borbulhante Aqueronte). A seguir, o tambor de escarificação, cilindro oco, posicionado na horizontal e revestido de lancetas móveis, que, girando em torno de seu eixo, com o agora indubitável cadáver em seu interior, remove-lhe a pele. Por fim, o picador, uma espécie de tubo onde os corpos são moídos grosseiramente ao mesmo tempo em que são centrifugados, a fim de separar o excesso de sangue e outros líquidos, os quais escorrem por canaletas até um grande ralo. O que resta, terminado o processo, são contêineres transbordantes de uma pasta vermelha, matéria viscosa formada pela anulação de centenas de seres que um dia existiram, experimentaram desejos e sensações, pisaram na Terra e nela tiveram seu lugar – tudo transformado, quando eles chegaram, em uma coisa única, sem forma, massa em que o próprio sentido da vida foi diluído.<br />Relendo o que escrevi acima, surpreendo-me comigo, com a quase-frieza do parágrafo. Mas minha percepção nem sempre foi assim, o tempo se encarregou de me fazer pedra (muitas semanas, sim; vários meses já? há quanto tempo estou aqui?). Mesmo a tua presença em meu pensar foi ralentando; uma heresia invocar a beleza da tua imagem e tuas mil sutilezas em uma mente tão conspurcada de sangue, tão mutilada pela violência. <br />Nos primeiros dias, não olhava para fora da cela, não enfrentava, de maneira alguma, a aterradora visão da Máquina, e a expressão, ou melhor, a ausência de expressão dos magarefes fazia-me gelar. Ao contrário do que se poderia supor, não tinham as faces contraídas de ódio ou qualquer vestígio de sadismo estampado nos rostos. Estavam ali indiferentes, envolvidos em um trabalho mecânico – transportar os humanos acorrentados até a Máquina, prendê-los nos ganchos, cuidar para que nenhum escapasse vivo –, apenas mais um trabalho como tantos outros. Essa apatia constante e a semelhança deles com a nossa própria espécie eram, sem dúvida, fonte maior de desconcerto e pânico.<br />Pânico, aliás, foi o que me acometeu logo na primeira vez em que eles trouxeram a ração. Reconheci, de pronto, naquela papa cheirando a azedo, pedaços de carne quase crua, púrpura. Cogitei morrer de fome. Mas nem para isso tive veias e paixão suficientes.<br />A última visão que tive de ti foi, creio, o estertor da minha capacidade de sentir. Quando passaste, esbatida entre tantas outras pessoas, sendo conduzida à Máquina, alguma coisa se agitou dentro do meu peito. Tive vontade de gritar teu nome, espremer meu corpo entre as grades, tudo isso por um segundo. Engoli as palavras abortadas junto com a pouca saliva de minha boca seca. A certeza da minha morte, pensei, era, naquele momento, o consolo que tinhas para encarar a tua própria.<br />Desde esse dia, estranhamente, tenho comido a ração com mais voracidade, e a carne parece mais tenra e adocicada. Os vômitos são também mais comuns; contudo, sinto que estou ganhando peso. Acho que eles vão gostar.<br />Quando eles chegaram, o abismo – holocausto. </p><div style="text-align: justify;"> </div><p style="text-align: justify;"> </p><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;"><br /><i>Agradeço ao escritor Diego Lopes pela sugestão do argumento.</i></div><p> </p><p> </p><p><br /></p>Rafael Bán Jacobsenhttp://www.blogger.com/profile/10584817415444028132noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-26397426361713889492010-08-02T16:28:00.000-07:002010-08-02T16:33:43.270-07:00Bioware<div style="text-align: justify;"> Andando na rua de madrugada, vi algo que não parecia certo mas que ninguém aparentemente considerava errado. Tratava-se de um primata lobotomizado que trazia em sua barriga a cabeça de Kevin Stone: o Doutor Articulação. A cabeça do orangotango, por sua vez, pendia tão sem vida sobre o pescoço que se assemelhava a um saco de trapos amarrado a um pangaré de um viajante sazonal. A vida em si era projetada do abdome, como um parasita alienígena.<br /><br /> Mas tudo bem, afinal o pobre Kevin Stone merecia uma segunda chance. Após uma tarde de palestras na respeitosa universidade de Cambridge, como é tradição, o médico foi ter com uma respeitosa prostituta inglesa que, ao vê-lo sem dinheiro, ligou para Rashid, seu segurança árabe de dois metros e quinze, que, de imediato, quebrou seu pescoço. Como Kevin iria fazer hiking no Alasca com o pescoço quebrado? Imbuída desta preocupação, sua mulher Susan, mais conhecida como “a mulher coala com pênis de elefante”, resolveu intervir. Através da tecnologia de células tronco, “Coala com pênis de Elefante” fez brotar a cabeça do Doutor Articulação Kevin Stone de dentro ventre do Orangotango “Pete”, cujo o cérebro foi “cuidadosamente” retirado para não haver conflitos de opinião. Em uma cena semelhante a um parto Gremlin incompleto, Kevin Stone brotou das entranhas do animal e ganhou vida nova! Agora ele tinha um corpo jovem e tenro para jogar frisbee e peteca com sua mulher “Susan Coala com Pênis de Elefante” e seus filhos “Josh Pernas de Gazela” e “Wilbur Bico de Pelicano”, aos domingos.<br /> <br />Enfim, estava andando eu na rua e dei de cara com Kevin Stone! Não. Eu não achei isso normal. <br /><br /><br />Inspiração?<br />http://www.ted.com/talks/lang/por_br/kevin_stone_the_bio_future_of_joint_replacement.html</div>Daniel Kirjnerhttp://www.blogger.com/profile/17675316358027126927noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-10991157284631681772010-02-26T20:01:00.000-08:002010-02-26T20:44:15.624-08:00Free me<table id="tbl_traducoes" class="cor_2"><tbody><tr><td class="col1 titulo"><div style="text-align: justify;">Saudações a todos os que visitam o blog,<br /><br /><br />Trago hoje aqui uma composição simplesmente emocionante e profunda. Não é de minha autoria, mas eu não poderia deixar de divir com vocês. A canção é de uma banda vegana de hardcore chamada Goldfinger. Vai a letra e a tradução ao lado. Em baixo, vai a miniatura de um clipe que não é oficial, mas é bom, e dá pra ouvir a música, que é o mais importante. Espero que gostem. Se gostarem, divulgue para aqueles a quem também possa servir.<br /><br />Prometo que logo mais trago alguma coisa autoral para dividir com vocês.<br /></div><br />Abraços!<br />Ortegal<br />(Ah.. eu escrevo sobre outros temas nesse blog, se alguém tiver interesse em visitar: <a href="www.cartadesmarcada.blogspot.com">www.cartadesmarcada.blogspot.com</a> )<br /><br /><br /><br /></td> <td class="col2 titulo"><br /></td> </tr><tr class="spc"><td class="col1"><br /></td><td class="col2"><br /></td></tr> <tr class=""><td style="font-weight: bold;" class="col1"><span style="font-size:130%;">Free me (Godfinger)</span></td><td style="font-weight: bold;" class="col2"><span style="font-size:130%;">Me Libertem (Goldfinger)</span></td></tr><tr class="spc "><td class="col1 vazio"><br /></td><td style="font-weight: bold;" class="col2"><span style="font-size:130%;"><em></em><br /></span></td></tr><tr class=""><td class="col1">I didn’t ask you to take me from here.</td><td class="col2">Eu não te pedi para me tirar daqui</td></tr><tr class=""><td class="col1"> I didn’t ask to be broken.</td><td class="col2"> Eu não pedi para ser quebrado</td></tr><tr class=""><td class="col1"> I didn’t ask to stroke my hair.</td><td class="col2"> Não te pedi para acariciar o meu pêlo</td></tr><tr class=""><td class="col1"> You treat me like a worthless token.</td><td class="col2"> Ou me tratar como uma ficha sem valor</td></tr><tr class="spc "><td class="col1 vazio"><br /></td><td class="col2"><em></em><br /></td></tr><tr class=""><td class="col1">But my skin is thick</td><td class="col2">Mas a minha pele é grossa</td></tr><tr class=""><td class="col1"> and my mind is strong</td><td class="col2"> E a minha mente é forte</td></tr><tr class=""><td class="col1"> I am build like my father was</td><td class="col2"> Eu cresci como o meu pai</td></tr><tr class=""><td class="col1"> I done nothing wrong.</td><td class="col2"> Eu não fiz nada de errado</td></tr><tr class="spc "><td class="col1 vazio"><br /></td><td class="col2"><em></em><br /></td></tr><tr class=""><td class="col1">So free me</td><td class="col2">Então me libertem</td></tr><tr class=""><td class="col1"> I just wanna feel what life should be.</td><td class="col2"> Eu só quero sentir como a vida deveria ser</td></tr><tr class=""><td class="col1"> I just want enough space</td><td class="col2"> Eu só quero espaço o suficiente</td></tr><tr class=""><td class="col1"> to turn around</td><td class="col2"> para me virar</td></tr><tr class=""><td class="col1"> and face the truth.</td><td class="col2"> E encarar a verdade</td></tr><tr class=""><td class="col1"> So free me</td><td class="col2"> Então me libertem</td></tr><tr class="spc "><td class="col1 vazio"><br /></td><td class="col2"><em></em><br /></td></tr><tr class=""><td class="col1">When do you gonna realize.</td><td class="col2">Quando vocês vão perceber</td></tr><tr class=""><td class="col1"> You’re just wrong</td><td class="col2"> Que estão simplesmente errrados?</td></tr><tr class=""><td class="col1"> You can’t even think for yourself</td><td class="col2"> Vocês não conseguem nem pensar por si próprios</td></tr><tr class=""><td class="col1"> You can’t even make up your mind</td><td class="col2"> Não conseguem nem pensar</td></tr><tr class=""><td class="col1"> So my mind’s a jail</td><td class="col2"> Então a minha mente é uma jaula</td></tr><tr class=""><td class="col1"> I hate the whole goddamn human race</td><td class="col2"> Eu odeio toda a raça humana</td></tr><tr class=""><td class="col1"> What the hell do you want from me</td><td class="col2"> O que diabos vocês querem de mim?</td></tr><tr class=""><td class="col1"> Kill me if you just don’t know</td><td class="col2"> Me matem se vocês não sabem</td></tr><tr class=""><td class="col1"> or free me.</td><td class="col2"> Ou... Me libertem</td></tr><tr class="spc "><td class="col1 vazio"><br /></td><td class="col2"><em></em><br /></td></tr><tr class=""><td class="col1">I just wanna feel what life should be</td><td class="col2">Eu só quero sentir como a vida deveria ser</td></tr><tr class=""><td class="col1"> I just want enough space to turn around</td><td class="col2"> Eu só quero espaço o bastante para me virar</td></tr><tr class=""><td class="col1"> ‘cause you’re all fucked</td><td class="col2"> Vocês estão todos fodidos</td></tr><tr class=""><td class="col1"> some day maybe you’ll treat me like you.</td><td class="col2"> Quem sabe um dia vocês me tratem como um de vocês</td></tr><tr class="spc "><td class="col1 vazio"><br /></td><td class="col2"><em></em><br /></td></tr></tbody></table><br /><object width="425" height="344"><param name="movie" value="http://www.youtube.com/v/7rRWLTGSNvg&hl=pt_BR&fs=1&color1=0xe1600f&color2=0xfebd01"><param name="allowFullScreen" value="true"><param name="allowscriptaccess" value="always"><embed src="http://www.youtube.com/v/7rRWLTGSNvg&hl=pt_BR&fs=1&color1=0xe1600f&color2=0xfebd01" type="application/x-shockwave-flash" allowscriptaccess="always" allowfullscreen="true" width="425" height="344"></embed></object>ortegalhttp://www.blogger.com/profile/17872404423480422098noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-67040194502728821562010-02-02T09:55:00.000-08:002011-07-02T13:22:32.433-07:00Tipos que conheci por aí - Parte I<meta equiv="Content-Type" content="text/html; charset=utf-8"><meta name="ProgId" content="Word.Document"><meta name="Generator" content="Microsoft Word 11"><meta name="Originator" content="Microsoft Word 11"><div style="text-align: right;"><link rel="File-List" href="file:///C:%5CUsers%5CDennis%5CAppData%5CLocal%5CTemp%5Cmsohtml1%5C01%5Cclip_filelist.xml"><!--[if gte mso 9]><xml> <w:worddocument> <w:view>Normal</w:View> <w:zoom>0</w:Zoom> <w:hyphenationzone>21</w:HyphenationZone> <w:punctuationkerning/> <w:validateagainstschemas/> <w:saveifxmlinvalid>false</w:SaveIfXMLInvalid> <w:ignoremixedcontent>false</w:IgnoreMixedContent> <w:alwaysshowplaceholdertext>false</w:AlwaysShowPlaceholderText> <w:compatibility> <w:breakwrappedtables/> <w:snaptogridincell/> <w:wraptextwithpunct/> <w:useasianbreakrules/> <w:dontgrowautofit/> </w:Compatibility> <w:browserlevel>MicrosoftInternetExplorer4</w:BrowserLevel> </w:WordDocument> </xml><![endif]--><!--[if gte mso 9]><xml> <w:latentstyles deflockedstate="false" latentstylecount="156"> </w:LatentStyles> </xml><![endif]--><style> <!-- /* Style Definitions */ p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal {mso-style-parent:""; margin:0cm; margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:12.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";} @page Section1 {size:612.0pt 792.0pt; margin:70.85pt 3.0cm 70.85pt 3.0cm; mso-header-margin:36.0pt; mso-footer-margin:36.0pt; mso-paper-source:0;} div.Section1 {page:Section1;} --> </style><!--[if gte mso 10]> <style> /* Style Definitions */ table.MsoNormalTable {mso-style-name:"Tabela normal"; mso-tstyle-rowband-size:0; mso-tstyle-colband-size:0; mso-style-noshow:yes; mso-style-parent:""; mso-padding-alt:0cm 5.4pt 0cm 5.4pt; mso-para-margin:0cm; mso-para-margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:10.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-ansi-language:#0400; mso-fareast-language:#0400; mso-bidi-language:#0400;} </style> <![endif]--> <span style="font-weight: bold;">Por Dennis Zagha Bluwol</span>
<br /></div><meta equiv="Content-Type" content="text/html; charset=utf-8"><meta name="ProgId" content="Word.Document"><meta name="Generator" content="Microsoft Word 11"><meta name="Originator" content="Microsoft Word 11"><link rel="File-List" href="file:///C:%5CUsers%5CDennis%5CAppData%5CLocal%5CTemp%5Cmsohtml1%5C01%5Cclip_filelist.xml"><!--[if gte mso 9]><xml> <w:worddocument> <w:view>Normal</w:View> <w:zoom>0</w:Zoom> <w:hyphenationzone>21</w:HyphenationZone> <w:punctuationkerning/> <w:validateagainstschemas/> <w:saveifxmlinvalid>false</w:SaveIfXMLInvalid> <w:ignoremixedcontent>false</w:IgnoreMixedContent> <w:alwaysshowplaceholdertext>false</w:AlwaysShowPlaceholderText> <w:compatibility> <w:breakwrappedtables/> <w:snaptogridincell/> <w:wraptextwithpunct/> <w:useasianbreakrules/> <w:dontgrowautofit/> </w:Compatibility> <w:browserlevel>MicrosoftInternetExplorer4</w:BrowserLevel> </w:WordDocument> </xml><![endif]--><!--[if gte mso 9]><xml> <w:latentstyles deflockedstate="false" latentstylecount="156"> </w:LatentStyles> </xml><![endif]--><style> <!-- /* Style Definitions */ p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal {mso-style-parent:""; margin:0cm; margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:12.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";} @page Section1 {size:612.0pt 792.0pt; margin:70.85pt 3.0cm 70.85pt 3.0cm; mso-header-margin:36.0pt; mso-footer-margin:36.0pt; mso-paper-source:0;} div.Section1 {page:Section1;} --> </style><!--[if gte mso 10]> <style> /* Style Definitions */ table.MsoNormalTable {mso-style-name:"Tabela normal"; mso-tstyle-rowband-size:0; mso-tstyle-colband-size:0; mso-style-noshow:yes; mso-style-parent:""; mso-padding-alt:0cm 5.4pt 0cm 5.4pt; mso-para-margin:0cm; mso-para-margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:10.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-ansi-language:#0400; mso-fareast-language:#0400; mso-bidi-language:#0400;} </style> <![endif]--><p class="MsoNormal" style="text-align: center; text-indent: 35.4pt; font-weight: bold;"><span style="font-family:Arial;">
<br /></span></p><span style="font-weight: bold;">Pedro</span>
<br />- Mas eu não como muita carne. E mais peixe.
<br />Conheci Pedro em uma festa e esta foi a última frase que me dirigiu.
<br />Por que obtive esta resposta, eu não sei. Estava apenas respondendo sua pergunta sobre o porquê de não achar eticamente correto se alimentar de animais. Ou melhor, tratar os animais como propriedade, cercear suas liberdades, impor-lhes sofrimento.
<br />De qualquer forma, sei lá o porquê, esta foi a última frase que me dirigiu. Talvez tenha estranhado meu longo silêncio. Às vezes tenho a impressão que algumas pessoas se arrependem de tentar puxar uma conversa séria em uma festa. Quantos “nossa, calma, era só uma pergunta, não precisa filosofar” eu já escutei...
<br />Demorei pra responder ao Pedro pois tentei entender o que significa “não muita”. Dizem que em uma cadeia americana um colega de corredor de Charles Manson jurava ser mais nobre por ter matado três pessoas a menos. O carcereiro, ouvindo, os achava demoníacos. Quando queria alguém morto, pagava por serviços devidamente credenciados. Não seria certo matar com as próprias mãos. Às vezes, sim, precisava executar poucas pessoas, mas sempre por mandato das instâncias governamentais superiores. Legalmente correto, como previsto em lei, o que não caracteriza um crime, claro. Muito menos um pecado.
<br />Talvez, a confusão entre respeito e quantidade de sofrimento imposto seja uma questão importante para compreender nossa cultura.
<br />Enfim, voltando ao Pedro, senti que ele esperava um sorriso de aprovação. Talvez fosse um grande zoólogo, possuidor da descoberta de que peixe é realmente um fruto que nasce em grandes florestas submarinas. Preciso reler Julio Verne, ver se acho esta informação relegada por nossa ciência ocidental. Mesmo assim, parte importante de meu silêncio foi tentando sacar a diferença entre comer mais peixe ou mais boi. Talvez a carne branca invoque a paz, sei lá. Talvez tenha a ver com a Era de Peixes. Ou melhor, com a Era de Aquário, ao menos pelo nome mais adequada à atual condição de vida e liberdade dos animais da Terra. Talvez matar o que pareça ser menos prejudicial ao organismo humano seja mais aceitável eticamente. Vai entender a lógica de pensamento de cada um! Eu diria que não há lógica, apenas reprodução de hábitos e vícios de gerações anteriores, mas se dissesse isto ao meu novo conhecido, seria tido como arrogante.
<br />Respiro...
<br />E tento recomeçar com calma o diálogo sem chamar meu colega de ilógico. Vá que ele achasse que o estava chamando de irracional. Fiquei com medo da reação, haja visto que possuir outra racionalidade que não a humana, ou mesmo não operar com mecanismos racionais são erros graves, merecedores de condenação à prisão, tortura e morte. Assim está nas leis.
<br />Tentei dar alguma resposta, mas percebi que Pedro já estava longe, em direção ao bar. Fiquei aliviado, é verdade, embora angustiado, sempre.
<br />
<br /><span style="font-weight: bold;">Anna e João</span>
<br />Anna e João eram casados e honestos.
<br />Anna havia sobrevivido por vinte dias a uma queda de avião na cordilheira dos Andes graças aos membros de seus falecidos companheiros.
<br />João entrava na mata nu, pulava em cima de um búfalo, rasgava-o com suas próprias unhas, comia sua carne crua, chupava o sangue quente, sugava o interior de suas entranhas, assim como vermes e outros parasitas (separava os mais graúdos para comer com cerveja de noite), roía a cartilagem dos ossos e mascava os olhos como chiclete.
<br />
<br /><span style="font-weight: bold;">Julia</span>
<br />Julia havia largado o ambiente violento da cidade. Mudou-se para o campo, onde, aos finais de semana, saia para pescar com os amigos.
<br />
<br /><span style="font-weight: bold;">Martha</span>
<br />Martha amava os animais. Toda tarde dava um belo bife aos seus gatos.<span style="font-family:Arial;"><o:p></o:p></span> <p style="text-align: left;" class="MsoNormal"><span style="font-family:Arial;"><span style="font-size:100%;"></span><o:p></o:p></span></p> Anonymousnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-63480549258285289192010-01-03T15:02:00.000-08:002010-01-03T20:00:20.115-08:00nova ética<div style="text-align: right;"><span style="font-style: italic;">por Rafael Bessa</span><br /></div><br />adentro rubras paredes onde não há luz do dia<br />percebo seres, de tristes olhos, tumores, agonia<br />seus corpos dilacerados apesar da senciência<br /><br />que crime cometeram estes seres tão chagados?<br />para, como messias das línguas, serem sacrificados<br />para serem torturados qual redentores da ciência<br /><br />e pergunto se em mim existe raro defeito<br />por ainda ter os olhos ligados ao peito<br />por não saber ver razão na boca que devora<br /><br />pois ao visitar o não-humano sofrimento<br />o rosto que vê é o mesmo em lamento<br />e o olho que crê é o mesmo que chora<br /><br />qual Francisco pregando à outras espécies<br />para a glória celeste elevo minhas preces<br />clamando compaixão por aqueles soturnos olhares<br /><br />e sei que de extremismo ou loucura me acusarias<br />por não querer jaulas maiores e sim jaulas vazias<br />mas urge nova ética além de hábitos alimentares<br /><br />urge socorrer aqueles olhares<br />urge nova ética<br /><br />--<br /><br />É a minha primeira postagem desde que o Daniel me convidou para o blog, a quem agradeço muito o convite e me desculpo pela demora em contribuir. Apesar de escrever poesia há anos, nunca havia escrito sobre especismo, libertação animal ou veganismo. Espero poder contribuir com frequencia daqui pra frente.Rafael Bessahttp://www.blogger.com/profile/07587427418026002898noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-50805259140748533872010-01-01T14:44:00.000-08:002010-10-24T14:26:32.110-07:00Vozes Vegetarianas na Literatura: Bashevis Singer<div style="text-align: justify;"><span style="font-family:georgia;"><br />Isaac Bashevis Singer (1904-1991), judeu e Prêmio Nobel de Literatura, foi outro escritor que abordou brilhantemente a temática vegetariana, em várias de suas obras. A tese de Bashevis Singer é clara: todos nós, seres humanos, por conta de nossos hábitos de consumo e de nossa cultura antropocêntrica, somos responsáveis por um crime monstruoso, um verdadeiro holocausto animal. O vegetarianismo de Bashveis Singer é bastante antológico, sendo citado, por exemplo, pelo escritor Moacyr Scliar no seu prefácio à coletânea “47 Contos de Isaac Bashevis Singer”, publicada pela Companhia das Letras em 2004. A menção de Scliar ao vegetarianismo de Singer, porém, não é lá muito abonadora, expressando bem o senso comum acerca dos vegetarianos, a imagem distorcida que as pessoas em geral têm daqueles que decidem não compactuar com a violência contra os animais e, por isso, optam por uma alimentação sem carne: “Não era fácil conviver com Singer, um homem que tinha suas idiossincrasias; era inclusive vegetariano.” </span> <span style="font-family:georgia;"> <br /><br />Singer, nascido na Polônia, filho e neto de rabinos hassídicos, emigrante para Nova York em 1935, construiu um universo ficcional que remete continuamente à infância e à adolescência vividas na Europa e à atmosfera de intensa religiosidade em que foi educado, de onde vêm os elementos predominantes de seu estilo e o estímulo da intenção de rever um “mundo morto”, o das pequenas comunidades judias nas aldeias polonesas (chamavam-se shtetl as povoações ou bairros de cidades com uma população predominantemente judaica). Seus contos, escritos de maneira simples, sem grandes sofisticações – revelando, no entanto, grande capacidade criativa e penetração crítica –, são comparáveis somente aos contos dos grandes nomes da literatura universal, como Guy de Maupassant, Edgar Allan Poe, Hoffman e Machado de Assis. Toda essa criatividade e essa crítica são, frequentemente, usadas a favor da causa vegetariana.</span><br /><br /><span style="font-family:georgia;">Um exemplo que fala por si é o seguinte trecho da novela “O Penitente”, em que o narrador, um judeu relapso que decide se voltar à espiritualidade e abandonar as coisas mundanas, tornado-se justo e virtuoso, se questiona sobre a exploração dos animais: </span> <span style="font-style: italic;font-family:georgia;" > <br /><br />Há muito eu chegara à conclusão que o tratamento do homem para as criaturas de Deus torna ridículos todos os seus ideais e todo o pretenso humanismo. Para que este estufado indivíduo degustasse seu presunto, uma criatura viva teve de ser criada, arrastada para sua morte, esfaqueada, torturada e escaldada em água quente. O homem não dava um segundo de pensamento ao fato de que o porco era feito do mesmo material e que este tinha de pagar com sofrimento e morte para que ele pudesse saborear sua carne. Pensei mais de uma vez que, quando se trata de animais, todo homem é um nazista.</span><br /><br /><span style="font-family:georgia;">Entre os contos de Bashevis Singer, que se tornou vegetariano na metade da década de 1960, destaca-se a pequena obra-prima “O Abatedor”, que conta a história de um homem, Yoineh Meir, um homem que, pela sucessão natural, seria o próximo rabino de sua aldeia, Kolomir, mas que, por causa de picuinhas dentro da comunidade judaica, acaba sendo preterido por outro. Para que não ficasse sem fonte de renda, porém, “caridosamente” o nomeiam o novo abatedor ritual da cidade. E é aí que começa o pesadelo do pobre homem, sujeito de alma sensível e que não suporta a visão de sangue. Frente à sua relutância em assumir a nova ocupação, o próprio rabino lhe diz que o homem não pode ser mais compassivo que o Todo-Poderoso, fonte de toda compaixão (não é mera coincidência qualquer semelhança com o clássico e tolo comentário “mas Deus fez os bichinhos para serem Comidos” que vegetarianos ao redor do mundo, há séculos, são obrigados a escutar todos os dias). Yoineh cede, assume sua nova função, mas o dia-a-dia no ofício se torna uma tortura:</span> <span style="font-style: italic;font-family:georgia;" > <br /><br />Muitas vezes por dia, Yoineh Meir repetia para si mesmo as palavras do rabino: “Um homem não pode ser mais compassivo que a Fonte de toda a compaixão.” A Torá diz: “Deves matar teu rebanho e tua manada conforme te ordenei.” No monte Sinai, a Moisés foram ensinados os modos de matar e abrir o animal em busca de impurezas. É tudo um mistério de mistérios: vida, morte, homem, animal. (...) </span> <span style="font-style: italic;font-family:georgia;" > E, no entanto, Yoineh Meir não encontrava consolação. Cada tremor da ave abatida provocava em Yoineh Meir um igual tremor nas entranhas. A morte de cada animal, grande ou pequeno, causava-lhe tanta dor quanto se estivesse cortando sua própria garganta.</span><br /><br /><span style="font-family:georgia;">O pobre homem passa a ter dificuldade para dormir, para comer, passa a viver em eterno drama de consciência e, cada vez mais, passa a questionar os dogmas religiosos e sua visão antropocêntrica (muito ao contrário do que se poderia esperar em um texto de um autor que, como é o caso de Bashveis Singer, teve sólida formação e vivência religiosa):</span> <span style="font-family:georgia;"> </span><span style="font-style: italic;font-family:georgia;" ><br /><br />Yoneh Meir estava achava que nem o próprio Messias podia redimir o mundo enquanto se praticasse injustiça contra os animais. O certo era que tudo pudesse renascer dos mortos: cada bezerro, peixe, mosquito, borboleta. Até no verme que rasteja na terra fulgura uma centelha divina. Quando se abate uma criatura, abate-se Deus... </span> <span style="font-style: italic;font-family:georgia;" > “Ai de mim, estou perdendo a cabeça!”, murmurou Yoineh Meir.</span> <span style="font-style: italic;font-family:georgia;" > Uma semana antes do Ano-Novo, houve um aumento nos abates. O dia inteiro Yoineh Meir passava ao lado de uma fossa abatendo galinhas, galos, gansos, patos. Mulheres empurravam, discutiam, tentavam chegar primeiro ao abatedor. Outras faziam piadas, riam, brincavam. Voavam penas, o pátio estava cheio de grasnidos, de tagarelice, do canto dos galos. De vez em quando, uma ave gritava como um ser humano. (...)</span> <span style="font-style: italic;font-family:georgia;" > Lá ficou até o pôr-do-sol, e o fosso se encheu de sangue.</span> <span style="font-family:georgia;"> <br /><br />Após esse dia de intensa matança às vésperas do ano-novo, Yoineh Meir vai à loucura: na calada da noite, sem conseguir conciliar o sono, sai de casa, joga fora objetos sagrados e clama:<br /><br /></span> <span style="font-style: italic;font-family:georgia;" >“Não quero nenhum dos Seus favores, Deus! Não tenho mais medo do Seu Juízo! Sou um traidor de Israel, um transgressor por vontade própria”, Yoineh Meir gritou> “Tenho mais compaixão que o deus Todo-Poderoso, mais, mais! Ele é um Deus cruel, um Homem de Guerra, um Deus de Vingança. A Ele não sirvo! O mundo está abandonado!”. Yoineh Meir riu, mas as lágrimas correram por suas faces como gotas ferventes.</span> <span style="font-family:georgia;"> <br /><br />Tresloucado, fora de si (mas, paradoxalmente, experimentando uma lúcida visão do horror dos crimes perpetrados contra os animais com as bênçãos das religiões), ele se embrenha na floresta,em direção ao rio, aos gritos:</span><br /><br /><span style="font-style: italic;font-family:georgia;" >“Pai do Céu, sois um matador!”, gritou uma voz dentro de Yoineh Meir. “Sois um matador e o Anjo da Morte! O mundo inteiro é um matadouro!”</span> <span style="font-family:georgia;"> <br /><br />No final do conto, surge, em toda sua força, o protesto final de Yoineh Meir:</span><br /><br /><span style="font-style: italic;font-family:georgia;" >Yoineh Meir caiu num choro que ecoou pela floresta em muitas vozes. Levantou o punho ao céu: “Demônio! Assassino! Fera devoradora!”. </span> <span style="font-family:georgia;"> <br /><br />Dias depois, seu corpo é encontrado boiando no rio. </span> <span style="font-family:georgia;"> <br /><br />Outro conto interessante, embora bem menos dramático, é “O Cabalista de East Broadway”. Nele, um escritor judeu que vive em Nova Iorque, claramente um alter ego do próprio Singer, narra-nos seus casuais encontros, ao longo de vários anos, com uma figura singular: Joel Yabloner, um velho autor iídiche especializado na Cabala e que, a despeito de ter muitos admiradores em Israel, preferia viver quase anonimamente e de maneira espartana nos Estados Unidos. Ao descrever o cabalista, o escritor-narrador, um ovolactovegetariano, não deixa de demonstrar sua admiração pelo fato de Yabloner ser um vegetariano estrito, embora a descrição de Yabloner, correlacionando seu estrito vegetarianismo com uma postura ascética, seja um tanto caricata: </span> <span style="font-style: italic;font-family:georgia;" > <br /><br />Joel Yabloner, alto, magro, o rosto amarelo e enrugado, tinha a cabeça brilhante sem um único fio de cabelo, o nariz seco, faces encovadas, um pomo-de-adão saliente no pescoço. (...) Vivia com os poucos dólares por semana que o Sindicato dos Escritores Iídiches podia gastar com ele. Seu apartamento na rua Broome não tinha banheiro, telefone, aquecimento central. Ele não comia nem peixe, nem carne, nem mesmo ovos ou leite: só pão, legumes e frutas. Na cafeteria, sempre pedia uma xícara de café preto e um prato de ameixas. </span> <span style="font-family:georgia;"> <br /><br />Certo dia, após assistir quase por acaso a uma palestra proferida por Yabloner, o escritor-narrador é convidado para participar de um banquete em homenagem a ele:</span> <span style="font-family:georgia;"> </span> <span style="font-family:georgia;"> </span><span style="font-style: italic;font-family:georgia;" ><br /><br />Descobri que a palestra havia sido organizada por um comitê que se encarregara de publicar a obra de Yabloner. Um dos membros do comitê me conhecia e perguntou se eu gostaria de comparecer a um banquete em honra da Yabloner. “Como o senhor é vegetariano”, acrescentou, “é a sua chance. Vão servir apenas vegetais, frutas, nozes. Quando se tem a chance de um banquete vegetariano? Uma vez na vida.” </span> <span style="font-family:georgia;"> <br /><br />Pode-se dizer, então, que esse conto ilustra, com propriedade e leveza, certos aspectos mais corriqueiros da “vida vegetariana”, como, por exemplo, a dificuldade em encontrar alimentos em eventos sociais e uma certa “tensão” existente entre vegetarianos estritos (ou veganos) e ovolactovegetarianos. </span> <span style="font-family:georgia;"> Haveria muitos outros exemplos, mas vamos ficando por aqui.</span><br /><br /><span style="font-family:georgia;">Vale a pena, contudo, relatar um emblemático episódio da vida do escritor. Quando Singer desembarcou em Estocolmo, no dia 6 de dezembro de 1978 para receber o Prêmio Nobel, foi cercado por dezenas de jornalistas que o bombardearam com dezenas de perguntas: “Por que o senhor escreve em iídiche?”; “Quais os escritores que mais o influenciaram?”; “O senhor está feliz pelo fato de o novo Papa ser polonês?”; “O senhor é vegetariano por motivo de religião ou por motivo de saúde?”. Singer só respondeu a esta última pergunta, legando-nos o que talvez seja a mais perfeita síntese da sua veg-visão de mundo: “Eu estou mais preocupado com a saúde dos animais do que com a minha própria.” </span><br /></div>Rafael Bán Jacobsenhttp://www.blogger.com/profile/10584817415444028132noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-66450675016323396542009-12-24T15:57:00.000-08:002009-12-24T16:04:49.695-08:00O Último Natal<meta equiv="Content-Type" content="text/html; charset=utf-8"><meta name="ProgId" content="Word.Document"><meta name="Generator" content="Microsoft Word 11"><meta name="Originator" content="Microsoft Word 11"><link rel="File-List" href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CLEONAR%7E1%5CCONFIG%7E1%5CTemp%5Cmsohtml1%5C01%5Cclip_filelist.xml"><!--[if gte mso 9]><xml> <w:worddocument> <w:view>Normal</w:View> <w:zoom>0</w:Zoom> <w:hyphenationzone>21</w:HyphenationZone> <w:punctuationkerning/> <w:validateagainstschemas/> <w:saveifxmlinvalid>false</w:SaveIfXMLInvalid> <w:ignoremixedcontent>false</w:IgnoreMixedContent> <w:alwaysshowplaceholdertext>false</w:AlwaysShowPlaceholderText> <w:compatibility> <w:breakwrappedtables/> <w:snaptogridincell/> <w:wraptextwithpunct/> <w:useasianbreakrules/> <w:dontgrowautofit/> </w:Compatibility> <w:browserlevel>MicrosoftInternetExplorer4</w:BrowserLevel> </w:WordDocument> </xml><![endif]--><!--[if gte mso 9]><xml> <w:latentstyles deflockedstate="false" latentstylecount="156"> </w:LatentStyles> </xml><![endif]--><style> <!-- /* Style Definitions */ p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal {mso-style-parent:""; margin:0cm; margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:12.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";} @page Section1 {size:595.3pt 841.9pt; margin:70.85pt 3.0cm 70.85pt 3.0cm; mso-header-margin:35.4pt; mso-footer-margin:35.4pt; mso-paper-source:0;} div.Section1 {page:Section1;} --> </style><!--[if gte mso 10]> <style> /* Style Definitions */ table.MsoNormalTable {mso-style-name:"Tabela normal"; mso-tstyle-rowband-size:0; mso-tstyle-colband-size:0; mso-style-noshow:yes; mso-style-parent:""; mso-padding-alt:0cm 5.4pt 0cm 5.4pt; mso-para-margin:0cm; mso-para-margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:10.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-ansi-language:#0400; mso-fareast-language:#0400; mso-bidi-language:#0400;} </style> <![endif]--> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:85%;">Saudações literárias veganas,<o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:85%;"><o:p> </o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:85%;">Quero iniciar a minha tentativa de colaboração com o blogue compartilhando estes oportunos versos para essa época do ano. <o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:85%;"><o:p> </o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><span style="font-size:85%;">
<br /></span></p><p class="MsoNormal"><span style="font-size:85%;">Abraços!<o:p></o:p></span></p> <p style="font-style: italic;" class="MsoNormal"><span style="font-size:11;"><span style="font-size:85%;">Ortegal</span></span></p><p class="MsoNormal">
<br /></p><p class="MsoNormal">
<br /></p><p class="MsoNormal">
<br /><span style="font-size:11;"><o:p></o:p></span></p> <p class="MsoNormal"><b style=""><o:p> </o:p></b></p> <p class="MsoNormal"><b style=""><o:p> </o:p></b></p> <p class="MsoNormal"><b style="">O último natal<o:p></o:p></b></p> <p class="MsoNormal">
<br />Chegou o natal dia sem par</p> <p class="MsoNormal">E o peru do quintal onde foi parar?</p> <p class="MsoNormal">À noite somente uma certeza</p> <p class="MsoNormal">A morte aguarda-me à mesa</p> <p class="MsoNormal">Não ouço mais seu grugulejo</p> <p class="MsoNormal">Abro os olhos e o que vejo?</p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal">
<br /></p><p class="MsoNormal">No prato</p> <p class="MsoNormal">Cercado de ornamentos</p> <p class="MsoNormal">Em pose indecorosa</p> <p class="MsoNormal">De fato </p> <p class="MsoNormal">Disfarça o tormento</p> <p class="MsoNormal">De uma morte dolorosa</p><p class="MsoNormal">
<br /></p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal">A este pedaço de carne</p> <p class="MsoNormal">Dão cuidados e muito zelo</p> <p class="MsoNormal">Mas agora é muito tarde</p> <p class="MsoNormal">Já viveu todo um flagelo</p><p class="MsoNormal">
<br /></p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal">Os comensais brindam,</p> <p class="MsoNormal">Sem remorsos</p> <p class="MsoNormal">E para trás ficam</p> <p class="MsoNormal">Só os ossos</p><p class="MsoNormal">
<br /></p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal">Pensam que celebram o nascimento </p> <p class="MsoNormal">De alguém especial</p> <p class="MsoNormal">Mas se alegram com o sofrimento</p> <p class="MsoNormal">De um pobre animal</p><p class="MsoNormal">
<br /></p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal">Pais, amigos, tias</p> <p class="MsoNormal">Ignoram o horror</p> <p class="MsoNormal">Cortam-lhe em fatias</p> <p class="MsoNormal">E só sentem o sabor</p><p class="MsoNormal">
<br /></p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal">Troco presentes</p> <p class="MsoNormal">Finjo alegria</p> <p class="MsoNormal">Não era bem esta</p> <p class="MsoNormal">A ceia que eu queria</p> <p class="MsoNormal">Para alguns é festa</p> <p class="MsoNormal">Para outros, agonia</p><p class="MsoNormal">
<br /></p><p class="MsoNormal">
<br /></p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal">(suposta autora de Affonso Romano de Sant´Anna)</p><p class="MsoNormal">
<br /></p><p class="MsoNormal">
<br /></p> <p class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p class="MsoNormal">Versão com fundo musical e imagens no youtube:</p> <p class="MsoNormal">http://www.youtube.com/watch?v=TH--KvwxYpE </p> ortegalhttp://www.blogger.com/profile/17872404423480422098noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-20861354237188700112009-12-07T11:32:00.000-08:002009-12-07T14:23:38.010-08:00História de um Matadouro<div style="text-align: center;">(Daniel Kirjner)<br /></div><br /><div style="text-align: justify;">Oito horas da noite, caminho pelas ruas desertas fazendo soar as pancadas de meu salto no chão por muitas léguas. Já não há mais ninguém, pelo menos que eu saiba da existência. Só vejo uma enorme solidão, à frente e atrás. Paro, tiro minha pena e começo a escrever. <br /><br />Vago meus últimos dias por sobre este planeta, poucas horas me restam de autocontrole. Sinto fome, só isso, nada mais. O alimento cessou de existir a algumas semanas, e os poucos restos de sobrevida já arranquei deste mundo deserto. Só resta a espera, loucura, desespero e, por fim... bem, não sei o que vem depois, se tudo em que acredito vivia neste local. O rebanho era enorme, farto, opulento. Alimentava-me como um rei, muitas e muitas vezes, sem jamais sentir qualquer indisposição. Era conhecido como matadouro, nome que muito me agradava e envaidecia. Grande bosta! Hoje sei que qualquer vaidade é transitória. Sempre me considerei um solitário, queria o mundo sem concorrência, exclusivo para o meu deleite, mas não existe prazer sem luta. O que esgotou o alimento não foi só a morte em massa de animais, mas também seu excesso. Por muito tempo, o banquete foi farto demais. A comida estragou e eu, confiante, voraz e exagerado, estraguei a mim mesmo.<br /><br />Deixo registrado o ocorrido nas linhas que seguem, para a posteridade, ou talvez para informar alguma forma de existência racional que consiga superar a rudeza deste planeta. A humanidade sempre sacrificou animais para comer. Desde suas formas mais primitivas, a caça sempre foi a principal fonte de energia para o corpo. Mesmo depois da descoberta e desenvolvimento da agricultura isso não mudou. Particularmente, tenho uma teoria sobre esse fato: Homo Sapiens Sapiens fica facilmente entediado e a crueldade – digo por experiência própria – é a forma mais divertida de passar o tempo. De volta ao acontecido, a humanidade evoluiu, criou o shopping center e, não mais que de repente, tinha tantas coisas para fazer que não podia mais caçar. Mas isso não os fez abandonar a carne, pelo contrário, começaram a pagar para que esta fosse produzida em grandes quantidades. Claro que os animais comidos tinham vidas e, consequentemente, doenças. Tecido doente não se come, nem cresce, muito menos vira lucro. Logo os seres humanos passaram a entupir seu rebanho de remédios e quem ficava forte era outra forma de vida desprezível. Primeiro veio a gripe de vaca, depois a do frango e a do porco, mas todas estas foram superadas com menos baixas. O que liquidou tudo não foi um vírus, mas um fungo que se espalhava pelo ar e tinha grande facilidade de se reproduzir em meio à gordura animal armazenada, consumindo-a primeiro e, na falta dela, atacando os órgãos internos de seu hospedeiro.<br /><br />O destino é mesmo um clichê de ficção científica. Fungos resistentes a antibióticos! Isso sim é muito engraçado. E o mais hilário é que não apareceu um Texano de espingarda para salvar ninguém e se tivesse vindo por aqui eu mesmo teria me banqueteado do sujeito. Mais engraçada ainda é a minha sina. Eu, que a mais de trezentos anos não ponho um pedaço de carne na boca, persisto como último ser da terra. Não posso me gabar de estar vivo, porque não estou, mas o fato de não respirar ou comer e estar podre e atrofiado por dentro me ajudou a continuar vagando por aí. Os fungos são meus companheiros a séculos e já cearam os órgãos que parei de usar. Você deve estar se perguntando que criatura bizarra fui, já que se esta carta esta sendo lida, há tempos devo ter virado pó. Sou um Vampiro. De certa forma, não sou muito diferente dos outros humanos que viveram na terra, aliás, já fui um deles. Ambos pertencemos a uma sociedade cruel, que se alimentou da morte de outras espécies inferiores ao nosso olhar. Caçamos, brigamos, cobiçamos, flertamos e bebemos. As diferenças são apenas duas: eles fodem para ter prazer, nós bebemos sangue; eles matam galinhas, vacas e sardinhas, nós os matamos. Não há muita diferença, afinal, entre matar uma galinha ou um ser humano. O sangue humano é mais gostoso, além do que eles sabem implorar pela vida, coisa sempre muito prazerosa e importante no ritual da caça.<br /><br />Já sinto o fim se aproximar. A Besta! Um instinto destrutivo incontrolável que existe em todos os seres que estão perecendo pela fome, ela é mais forte ainda nos vampiros, nossa maldição, ante-sala do fim. Despeço-me enquanto ainda tenho o dom do raciocínio, pois para um filho de Malkav a loucura chega mais rápido. Adeus! Quem sabe te vejo no inferno.</div>Daniel Kirjnerhttp://www.blogger.com/profile/17675316358027126927noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-77947336335989950642009-11-18T10:56:00.000-08:002010-03-30T07:33:46.277-07:00Uma Angustiante Hora do Almoço<b><span style="font-family:Arial;font-size:11;"><?xml:namespace prefix = o /><o:p></o:p></span></b> <p class="MsoNormal" style="TEXT-INDENT: 35.4pt; TEXT-ALIGN: right"><span style="font-family:Arial;font-size:85%;"><span style="FONT-WEIGHT: bold">Autor: Dennis Zagha Bluwol</span></span></p><p class="MsoNormal" style="TEXT-INDENT: 35.4pt; TEXT-ALIGN: right">(Texto presente no Zine-Livro "Escritos Éticos & Picaréticos")</p><p class="MsoNormal" style="TEXT-INDENT: 35.4pt; TEXT-ALIGN: right">Versão alterada em 30/03/2010<br /></p><p class="MsoNormal" style="TEXT-INDENT: 35.4pt; TEXT-ALIGN: justify"><span style="font-family:Arial;font-size:85%;"><br />A tempos venho namorando o crudivorismo[1] e feito algumas experiências de poucos dias ou, no máximo, poucas semanas. Agora estou aqui, olhando para a mesa.<br />Hora de preparar o almoço. Serei eu crudívoro ou prepararei um arroz cozido? Dúvida angustiante. Parece-me óbvio comer as coisas como vêm, cruas, inteiras, íntegras, resultados de processos de bilhões de anos de adaptações em conformidade com as espécies que as comem. Mas meu arroz integral parece tão saudável e sempre me deixou tão bem… Será que desde o neolítico não nos adaptamos perfeitamente a nos alimentar de cereais cozidos? Mas os crudívoros não devem estar mentindo quando dizem que vivem muito melhor assim.<br />Parcela dos crudívoros, especialmente os vinculados à chamada alimentação viva, continuam a alimentar-se de cereais e grãos, mas germinados, não cozidos. Outra parcela diz que nossa natureza é frugívora: frutas, folhas, sementes, castanhas. Essa me parece uma dieta (um modo de vida) interessante eticamente e ambientalmente.<br />Eu me preocupo muito com nosso modelo de mundo, nosso modo de inserção na natureza, nos ecossistemas. Há apenas dez mil anos começamos a domesticar radicalmente a natureza e a plantar cereais e grãos em larga escala (alguns dizem que foi pra fazer cerveja. Será? Faz sentido o uso de álcool para aguentar viver a vida sem sentido que então se impôs e para causar passividade naqueles que não desejariam viver como trabalhadores rurais e não mais caçadores-coletores).<br />Então, o que comíamos antes? Alguns dizem que éramos frugívoros. Mas, creio eu, certamente nossos parentes neolíticos também comiam carne. E isto eu descartei já como opção.<br />Cereais e grãos… Alimentos da civilização? Frutos da arrogante e violenta domesticação da natureza? Será possível nos alimentar de cereais e grãos em uma relação harmoniosa com o resto da natureza? Como produzir tanto cereal e grão em uma organização que não dependa da brutal domesticação e eliminação de diversidade? Se não for possível, posso viver como frugívoro? Alguns vivem e dizem que vivem no auge de suas energias e felicidade. Será mesmo que nosso organismo ainda consegue viver assim por muito tempo? Angustiantes dúvidas. E a hora do almoço está passando… Cru ou cozido? Cereais e grãos ou frutas e folhas? Ou frutas, folhas, cereais e grãos, crus e cozidos? Dúvidas. Deveriam colocar nos livros de nutrição como fatores antinutricionais: angustiar-se com o alimento à mesa.<br />Como pode uma espécie ser tão perdida que não sabe nem mesmo qual seu alimento ideal? Talvez nos caracterizemos por sermos uma espécie sem ideal. Algumas são carnívoras, outras herbívoras, ninguém fica se preocupando com o que seria mais saudável comer na próxima refeição. Mas nós somos perdidos. Talvez seja esta nossa natureza. Já estamos tão perdidos que não possuímos mais uma natureza de fato. Estamos sempre em busca. Todo este desenvolvimento do nosso pensamento abstrato e capacidade de reflexão nos tornou essas coisas, sempre criando, sempre criando, e sempre perdidos, sempre em dúvida. O resto da natureza é que sofre a cada nova genial criação humana. Mas não há como vivermos sem criarmos. Seremos obrigatoriamente contraditórios com nosso próprio ecossistema? E, pior, com todos os ecossistemas terrestres? Angústia...<br />Como espécie, qual valor tem o fato de termos nos adaptado a comer quase tudo, cru ou cozido? É um ganho da espécie ou um ganho de obrigação de destruição e competição por alimentos que antes pertenciam apenas a outras espécies, quebrando o equilíbrio existente na diversidade? Somos algo como um vírus, nos apropriando de tudo e todos? Pior, vírus conscientes, autointitulados senhores do destino de todos os outros seres, de todos os ambientes terrestres. Ai meu estômago! Agora, além de fome, me ataca a gastrite.À minha volta há mamões e mangas (certo, com agrotóxicos e exploração dos trabalhadores rurais, transporte com combustíveis fósseis e tudo mais). Ao meu lado há também arroz e lentilha prontos para serem cozidos (com os mesmos poréns). Dentro de mim há dor.<br />Alguns ficariam bêbados para esquecer a angústia. Eu já aprendi que isto só a aumenta. E traz passividade e doença. Fico então olhando para a manga como se fosse um alienígena. Analisando, analisando, pensando. Ai minha capacidade analítica, como dói!<br />Minha existência tem fome…<br />[1] Crudívoros são pessoas que se alimentam apenas de alimentos crus.</span></p>Anonymousnoreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-6977067562379810950.post-44436871251994770352009-10-25T16:21:00.000-07:002010-10-24T14:27:34.630-07:00Vozes Vegetarianas na Literatura: Swift<p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><br /></p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;">No romance satírico “As Viagens de Gulliver”, do irlandês Jonathan Swift (1667-1745), encontramos a percepção de que o vegetarianismo é uma escolha racional e virtuosa.</p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;">A narrativa inicia-se com o naufrágio do navio onde Gulliver seguia. Após o naufrágio, ele acaba sendo levado pelas circunstâncias às mais pitorescas terras. O episódio mais conhecido é, certamente, aquele em que Gulliver é arrastado para uma ilha chamada Lilliput. Os habitantes dessa ilha, que eram extremamente pequenos, estavam constantemente em guerra por futilidades. Nosso interesse, porém, está na última das viagens de Gulliver.</p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;">Em sua última viagem, Gulliver encontra os Houyhnhnms, uma raça de cavalos que possuía muita inteligência, e os Yahoos, uma raça humanóide imperfeita, de comportamento selvagem. Dentro da alegoria, os Yahoos representam o homem em sua natureza mais primitiva, e os Houyhnhnms personificam o homem em seu mais elevado potencial, atingido com o exercício pleno da razão. A diferença entre as duas raças é marcada de diversas formas, inclusive pela dieta que seguem. Os Houyhnhnms comem basicamente cereais, enquanto os Yahoos são contumazes comedores de carne. Associando-se o tipo de alimento consumido às demais características de cada uma dessas raças encontradas por Gulliver, fica clara a idéia subjacente de que uma dieta carnívora tende à selvageria enquanto um estilo de vida vegetariano se associa a maior discernimento e clareza mental.</p><p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;">Nas palavras do romancista:</p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><i style="">(...) deparei com três das detestáveis criaturas que encontrara após minha chegada e que se alimentavam de raízes e da carne de alguns animais que ao depois verifiquei serem burros e cães e, de onde em onde, uma vaca, morta por acidente ou moléstia. (...) Possuíram-me um horror e um pasmo indescritíveis quando observei, nesse abominável animal, uma perfeita figura humana: tinha o rosto, efetivamente, achatado e largo, o nariz deprimido, os lábios grossos e a boca enorme; mas as diferenças são comuns a todas as nações selvagens (...). O garrano alazão ofereceu-me uma raiz, que segurava entre o casco e a quartela; tomei-a nas mãos e, depois de havê-la cheirado, devolvi-lha com a maior civilidade possível. Foi então buscar ao covil dos Yahoos um pedaço de carne de burro, mas esta fedia tanto que me afastei, repugnado, atirando-a ele ao Yahoo, que a devorou sofregamente. Mostrou-me, em seguida, uma paveia de feno e uma quartela de aveia; mas abanei a cabeça para significar que não eram alimento para mim. <o:p></o:p></i></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;"><o:p>A partir daí, convivendo com os virtuosos Houyhnhnms, Gulliver se acostuma com a sua dieta.</o:p></p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;">Cabe ressaltar que o vegetarianismo de Swift não é obra do acaso. </p> <p class="MsoNoSpacing" style="text-align: justify;">Thomas Tryon (1634-1703), um filósofo autodidata e aluno do místico protestante Jakob Boehmen, publicou, em 1691, seu livro, “O Caminho da Saúde”, advogando uma dieta vegetariana. Essa obra era amplamente lido pelos pensadores da época. Ela até mesmo influenciou o jovem Benjamin Franklin (1706-1790) a se tornar um "Tryonista" por algum tempo. A mensagem de Tryon também influenciou o Dr. George Cheyne (1671- 1743), um famoso médico de Londres. Anos de indulgência o deixaram com aproximadamente 250 quilos; assim, ele decidiu seguir a dieta vegetariana descrita por Tryon. O sucesso de Cheyne levou-o a publicar, em 1724, o “Ensaio sobre Saúde e Vida Longeva”, recomendando uma dieta sem carne. O fundador da Igreja Metodista, John Wesley (1703-1791), foi paciente de Cheyne e convertido ao vegetarianismo. Cheyne contava com outros famosos amigos, como o poeta Alexander Pope (1688-1744), o filósofo David Hume (1711-1776) e – aí está! – o escritor Jonathan Swift.</p>Rafael Bán Jacobsenhttp://www.blogger.com/profile/10584817415444028132noreply@blogger.com3