domingo, 24 de outubro de 2010

Korban

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Korban é a palavra hebraica para "holocausto" ou "sacrifício". Os sacerdotes da religião judaica, até o ano 70 d.C., realizavam sacrifícios de animais no Templo de Jerusalém. Ainda hoje, outras tantas religiões seguem realizando matanças de animais. Até quando?


Korban

O pequeno cordeiro havia nascido em um canto qualquer do quintal e, agora, passados meses de feno e repouso no estábulo, acompanha a caravana que, enfim, após longa viagem, chega a Jerusalém. Seu caminhar tem o ritmo imposto pelo puxar da corda que traz amarrada ao pescoço, e quem assim o guia é Iochanan, o mesmo Iochanan que, certo dia, muito cedo, indo ao pátio buscar lenha para o fogo, encontrara a ovelha a lamber a única cria daquela sua primeira parição, o Iochanan que, então, muito afoito, voltara aos pulos para o interior da casa, anunciando ao pai e à mãe o que, para ele, era um acontecimento dos mais extraordinários, desses capazes de roubar o sono e povoar a mente de indagações por vários dias: de onde viera a substância necessária para que se fizesse a partir do nada? Se tinha um balido tão estridente, por que não se ouvia na época em que ainda estava dentro da barriga? E era, de fato, um balido dos mais agudos o que se escutava quando Iochanan, dando voltas no poço, punha-se a correr atrás do recém-nascido ou quando, ao contrário, era ele que saltitava atrás do menino, desajeitado e aprendiz. A mãe o repreendia, que deixasse o filhote quieto, mas Iochanan tinha certeza: eram exclamações de contentamento. Quando, enfim, se cansavam, gostava de pegá-lo no colo e sentir a lanagem amena e clara, como só podem ser as coisas que ainda não se contaminaram com o mundo.

Apesar de sonolentos, os dois andam rápido, seguindo os peregrinos mais à frente, pois assim exige a expectativa de Iochanan: quer logo contemplar a cidade, conhecer o templo, entender o que lá acontece. Conforme dissera o pai às vésperas da partida, havia completado treze anos e, por isso, já podia realizar serviços religiosos junto com os homens da casa. Vais conhecer o sagrado, assim lhe falara.

Súbito, os olhos de Iochanan descobrem que ver Jerusalém significa ver o templo, e ver o templo é o mesmo que ver Jerusalém, pois a enorme edificação, ocupando um ponto elevado da paisagem, reflete, em seu mármore branco, a luz rascante da aurora e, com isso, espalhando inescapáveis cintilâncias rubras, ofusca todas outras construções dentro dos muros da cidade, fazendo com que pareçam nada mais do que pedras soltas e sem forma. O pai de Iochanan ergue o braço, indicando o destino; a caravana, fôlego renovado, avança.

A manhã é pouco mais que uma promessa; mesmo assim, pessoas ganham as ruas, e muitas se deslocam em direção ao templo, como se dele proviesse um mistério imantador. Enquanto, mesmerizado, atravessa as estreitas vias, sobre as quais se debruça o velho casario ocre, Iochanan quase deixa escapar o cordeiro, que, de repente, como se algo o espantasse, traciona a corda e projeta-se para o lado. O menino o detém a tempo, abaixa-se e, afagando-lhe a cabeça, tenta tranquilizá-lo. Em meio ao burburinho crescente, escuta, então, a voz do pai, o qual, dezenas de passos adiante, percebendo o atraso do filho, o chama com insistência.

O grupo, que congrega membros da família de Iochanan e outros homens da aldeia onde moram, perto de Cafarnaum, alcança a muralha sul do templo, onde está o portão principal. Assim, de perto, tudo é ainda mais esplendoroso, mal cabe no olhar, e o garoto surpreende-se ao perceber que não mentiam ou sequer exageravam os mais velhos quando contavam que a construção era ornada com ouro e prata e tampouco quando afirmavam que as duplas colunatas pareciam não ter fim. Logo na entrada, um homem alto, vestido de branco, com um uma mitra de mesma cor e uma faixa escarlate amarrada à cintura, achega-se ao pai de Iochanan. Durante a conversa, mais de uma vez, Iochanan nota que o pai olha para trás, em sua direção, e, em certo momento, talvez julgando que a discrição já não fazia mais sentido, aponta para o filho ou – assim pensa o menino – para o pequeno cordeiro que se roça em suas pernas, balançando o rabo. Iochanan aproxima-se um pouco, aguça os ouvidos e escuta algumas palavras esparsas ditas pelo pai e seu interlocutor: oferenda pacífica, é preciso verificar se não há defeito algum, o banho ritual. O pai vira-se de novo para trás e gesticula a Iochanan para que se aproxime. O menino faz menção de amarrar o cordeiro a um pilar, mas o pai, de imediato, com novo sinal, indica que o traga junto. Mais uma vez o filhote parece relutar; entretanto, cede à força daquele que o vem conduzindo a dias, assim como Iochanan obedece às instruções paternas. O homem de branco fixa o olhar no cordeiro, coça a longa barba, e assim permanece por vários segundos; abaixa-se, então, para ver de perto o focinho, as ventas e as orelhas. Eu o entrego de volta nas escadarias, na subida para o pátio, diz ele, enfim, enquanto se afasta, levando consigo o animal, que, agora, traz as patas rijas, negando movimento. Iochanan chega a dar alguns passos acompanhando-os; porém, logo sente a mão do pai cair sobre o ombro: vem, meu filho, precisamos nos purificar.

Encontram, mais adiante, naquele pavimento, grandes tanques de água límpida onde, separadamente, homens e mulheres imergem, proferem bênçãos ancestrais e põem-se a esfregar, com as mãos atormentadas, cada palmo da pele, como se dela quisessem expurgar não apenas o suor abundante e a poeira do deserto, mas também a memória de todas as imundícies que, desde os humores uterinos, a haviam conspurcado. Iochanan já não enxerga o cordeiro, tampouco o homem de branco. Enquanto, imitando o que fazem os demais, despe as principais peças da vestimenta, ficando somente com a fina túnica de linho, e desce os degraus que levam à água, o menino olha mais uma vez ao redor, procurando o filhote. Nada, apenas uma confusão de pernas a preencher o interminável corredor. Nesse instante, Iochanan se desconcerta ao aperceber-se de que seria incapaz de reconhecer as feições do homem de branco, pois não havia olhado o seu rosto, algo o impedira, e, agora, só agora, ele descobre: esse algo era medo.

Saem do banho. Os homens da caravana estão agora mais circunspectos, trocam poucas palavras, devem estar preparando o espírito para a adoração, adivinha Iochanan, enquanto sente a água já a evaporar, aniquilada pelo ar quente e seco. Tudo está bem, e o pensamento lhe escapa em um murmúrio. Gosta de ouvir isso e repete várias vezes, à guisa de prece.

Sente alívio quando, de fato, junto a uma ampla escada, reencontra o cordeiro. O homem de branco está com ele; Iochanan, todavia, mais uma vez, não tenta lhe mirar as faces. Ao devolver o animal ao pai de Iochanan, passa-lhe algumas instruções que o menino não compreende, mas tudo parece corriqueiro para o pai, que assente a cada observação do estranho. Quando o homem se afasta, o garoto pede ao pai que o deixe conduzir o cordeiro.

No alto da escadaria, chegam a um pátio. O sol tomou conta do firmamento com inesperada presteza, e, no amplo terreno aberto, já estão numerosos vendedores com suas mesas. Em meio à algazarra e sob o olhar dos soldados do Império, eles trocam as várias moedas que os fieis, vindos de todas as partes, trazem e apregoam cordeiros, cabras, pombos. Para que servem todos aqueles animais?, pergunta-se Iochanan. Não tem tempo para elaborar uma resposta, pois uma sensação de frio nubla-lhe a mente quando vê um vendilhão de dedos rudes e nodosos agarrar, dentro de uma gaiola lotada, duas pombas miúdas, que tentam em vão abrir as asas, e passá-las a uma velha ansiosa que, sem cuidado algum, as joga em um saco de estopa e, então, expõe os cacos amarelados dos dentes, sorrindo em agradecimento.

Neste pátio, Iochanan depara com vários homens trajados da mesma forma que o homem de branco. Andam de lá para cá, passam orientações aos peregrinos. São os sacerdotes, compreende. Não tinha enxergado o rosto do primeiro, mas, agora, vendo um exército deles, percebe que são todos o mesmo: idênticas barbas agrisalhadas, idêntica altivez, idêntica urgência de movimentos e – assustador – idêntico semblante.

O pai está de novo ao seu lado e começa a explicar, apontando um prédio austero, retangular, cujo topo aparece mais adiante, por detrás de muros: a casa de Deus, o coração do templo, fica ali, mas, para chegar até lá, temos de atravessar mais muros, cruzar outros pátios – o recinto sagrado, onde arde eternamente o candelabro de sete braços, precisa ser protegido.

Transpondo mais um portão, sobre o qual avisos entalhados nas pedras alertam aos gentios que permaneçam afastados, sob pena de morte, chegam ao pátio reservado aos hebreus, onde ainda se permite a circulação das mulheres. Contudo, ali não permanecem, pois o destino é o mais interno dos pátios públicos, o pátio dos homens. Nele, a quantidade de pessoas é bem menor; porém, mesmo assim, o caos reina. Dirigem-se ao fundo, onde há um enorme portão de bronze entalhado, cujas folhas semiabertas permitem entrever, finalmente, a morada de Deus. Mais longe, no entanto, não podem ir; dali em diante, apenas os sacerdotes.

Salta à vista de Iochanan o grande altar quadrado que ocupa quase todo o espaço além do portão de bronze, bem em frente à entrada do coração do templo; estranha os moirões de pedra e as argolas de ferro que jazem ao pé da estrutura e as fogueiras que crepitam sobre ela. O menino escuta alguém comentar: sempre me contaram que, por graça do Criador, este espaço das oblações não tem mau cheiro e tampouco atrai as moscas. Então, Iochanan compreende, e a revelação ganha força com uma lufada mais intensa de ar que lhe atira um odor nauseabundo nas narinas. Será possível que não sintam? Será possível que tenham viajado todos esses dias para algo assim? Por impulso, espia o cordeiro ao seu lado, e este lhe responde fitando-o com olhos líquidos. A mão do menino fraqueja ao segurar a corda.

Um sacerdote se aproxima com a mão esticada, solicitando que lhe passe a corda. Iochanan não se move; mal consegue respirar ao ver aquele fantasma diante de si, o presságio funesto que encarna. Impaciente, o pai toma o cabresto e o entrega ao novo homem de branco, o qual, de imediato, conduz para dentro o cordeiro e o amarra em uma argola entre dois daqueles moirões, que mais parecem lápides. Iochanan cerra as pálpebras, não quer testemunhar a barbárie que se anuncia, mas fica repetindo-se, na obscuridade, a última cena capturada pelas pupilas: o cordeiro tentando manter a cabeça erguida, gemendo feito uma criança, balindo e esticando a língua cinzenta. Iochanan fica assim por um instante que parece esgarçar-se indefinidamente, tentado fingir que não está ali, mas os sons não param, e, por isso, não há como cessar o pesadelo. Decide enfrentar, precisa fazê-lo, é tão culpado do que está prestes a acontecer quanto todos os outros que o cercam. Não pode fugir. Abre os olhos.

O cordeiro ainda está ali deitado, agora mais silencioso, quase imóvel, a não ser por sacudir nervosamente o rabo curto e os lados se alçarem com mais rapidez que de costume. O sacerdote baixa gentilmente, sem esforço, a cabeça levantada, ergue, com a mão direita, uma faca de lâmina reluzente, grita uma bênção e, girando o braço em arco para fazê-la cair sobre a vítima, corta-lhe a garganta. O animal treme, o rabinho endurece e para de abanar. Escancara a boca, mas berro algum se ouve, pois irrompem as trombetas rituais, tocadas pelos sacerdotes perfilados junto à entrada do habitáculo de Deus. Cada estertor do cordeiro abatido provoca em Iochanan um igual tremor nas entranhas. Enquanto o sangue se derrama em profusão, o pequeno corpo se recusa a aceitar qualquer justificativa ou desculpa, resiste, e parece discutir com o Criador até o último alento. Os olhos aquosos do cordeiro agora são vidro. Opaco.

Deseja contemplar o sagrado, sentir a paz e a misericórdia de que falam os hinos entoados; porém, ante o horror, Iochanan enxerga apenas o monocromatismo monstruoso de uma nuvem vermelha que lhe barra a visão, e invade-lhe a certeza lancinante de que são apenas palavras ocas, repetidas por automatismo, e que sobem aos céus junto com a fumaça negra das piras para encontrarem idêntico destino: perecer ao vento, na diluição irredimível do que é apenas humano, cruelmente humano.

Depois, o animal tem a pele arrancada, o tronco aberto e as entranhas retiradas. As vísceras escorrem, feito cobras arroxeadas se enredando cegamente pelo chão. Um sacerdote asperge o sangue recolhido em uma vasilha dourada pelos quatro cantos do altar, e outros seis pegam os despojos e, correndo, os carregam para cima, atirando-os à gula do fogo alto das piras. O cheiro de carne queimada engrossa o ar.

Se existe um Deus bom, então até a mais humilde das coisas vivas deveria ser salva, reflete Iochanan enquanto se dirige à saída, junto com os demais; se Deus é bom somente com os fortes, se não há justiça para os mais frágeis, para aqueles que sequer têm voz, para as pobres criaturas que são oferecidas em sacrifício à humanidade, então não existe esta tal benevolência, esta tal justiça. O menino sente uma dor insuportável nas têmporas. Um suor gelado escorre pelas costas.

Os homens da caravana agora conversam amenidades e riem. Como é possível?, brada o espírito de Iochanan. Será possível que nada sintam? Para seu desespero, então, o pai se aproxima, trazendo um sorriso e uma pergunta: como te sentiste, meu filho? Estás feliz por conhecer o sagrado?

A voz do pai está distorcida, a frase termina em um zumbido. Iochanan tenta falar, mas a boca se resseca, e um engulho torce-lhe o estômago; sente que os joelhos estão ainda firmes por milagre, que seus músculos parecem, agora, tão moles quanto as vísceras do cordeiro morto. Na convulsão que, a muito custo, tenta conter, no paroxismo daquele asco, ouve repetida a indagação, agora mais áspera: não me dizes nada, Iochanan? Não enxergaste a Deus no santo templo?

Abaixa os olhos, responde que sim e começa a vomitar.

Quando eles chegaram


O que aconteceria se alienígenas invadissem nosso planeta e resolvessem fazer conosco tudo o que fazemos com os animais não-humanos? Como seria estar do outro lado dessa história?

Essa é a pergunta (tão velha quanto inquietante) que busquei responder neste conto. Boa leitura!


Quando eles chegaram

O sistema de baias isoladas é bastante eficiente para o confinamento das unidades. Todavia, os seres dessa espécie – para utilizar uma terminologia própria deles –, por terem desenvolvido rudimentares formas de arte, comunicação e interação social, podem sofrer de grande apatia, adoecer e definhar se completamente privados de tais elementos, o que, sem dúvida, acarreta perdas na produção. Para contornar esse problema, algumas soluções triviais: reprodução de sons variados no ambiente, uso de celas com mecanismo de estimulação tátil e olfativa programada ou mesmo o fornecimento de material simples para escrita. O bem-estar das unidades produtivas deve ser sempre a preocupação maior.

Manual de Técnicas de Manejo e Abate
Versão Beta
Volume XIII – Humanos
Ano 2167 (tempo terrestre)


Quando eles chegaram, estávamos juntos em nosso quarto, o dia querendo tingir de laranja a transparência úmida das taças de champanhe, a minha-pele-tua, o redemoinho branco dos lençóis. Estás ouvindo?, perguntaste, erguendo a mim teus olhos enevoados de sono. Sim, eu disse, tantos gritos aí fora, parecem todos loucos. A pressão de tuas unhas nos meus ombros antecipou a pergunta: será que eles chegaram?
Liguei o hológrafo, e a imagem que dominou o aposento, engolindo, com suas cores, o relevo dos móveis, não deixava, tamanha a clareza, espaço para qualquer esperança de equívoco ou dúvida confortável: era um imenso geóide, pousado na esplanada em frente ao Palácio do Governo Central, cercado por uma multidão de curiosos a se acotovelarem e por soldados das tropas especiais, protegidos em suas armaduras de quartzo polimerizado e carregando pesados rifles a laser. Sim, eles haviam chegado.
Não eram boatos, tampouco uma conspiração anti-governista, como afirmavam as autoridades, as notícias espalhadas nos últimos dias, dizia o repórter. O anúncio feito por observatórios astronômicos independentes a respeito da aproximação do objeto não identificado confirmava-se agora de modo irrefutável. Ali estava, tangível, o delírio dos inimigos do sistema; ali estava, destruindo o gramado da maior praça da capital do planeta Terra, a mentira dos acadêmicos universitários que, atuando em áreas como exobiologia, buscavam justificar captação de recursos para suas pesquisas; ali estava, em intensas cintilações de âmbar, à primeira luz do dia, a inventividade dos autores de ficção científica.
Em pânico eu te senti; por isso te abracei.
Não há exagero em dizer que o planeta parou quando eles chegaram. Acompanhávamos as notícias segundo a segundo, enlaçados sobre o colchão, querendo acreditar que era apenas mais um filme tolo ou, melhor, que os excessos do amor na noite passada haviam induzido um sono abissal do qual ainda não tínhamos despertado. Nunca antes eu havia me sentido testemunha da história, nem mesmo quando instaurou-se o Governo Central após a Terceira Guerra, nem mesmo quando, a seguir, nossa cidade foi escolhida a capital. E não importa se vou viver mais dois dias ou cem anos (cem anos, impossível, o destino não pode ser tão pérfido): jamais esquecerei as palavras que, em nossa língua, ecoaram da nave por toda a esplanada e, dali, foram transmitidas para todo o mundo.
Não temam! Em paz e em segredo, os visitamos por muitos séculos e, agora, também em paz, nos revelamos. No universo, somos vizinhos; na caminhada evolutiva, somos irmãos. Trazemos nossos ensinamentos e buscamos a acolhida neste planeta, pois muitos dos erros que hoje aqui são cometidos nós também já cometemos. Não temam, pois ainda há esperança. Trazemos a boa nova.
Contrariando as expectativas, eram muito parecidos conosco, apenas mais altos e sem pêlos. No encontro com o Grande Líder e os conselheiros da Liga das Nações, mais detalhes: vinham de um planeta em galáxia não catalogada ainda pelos terráqueos, um planeta dividido pelas guerras e condenado à morte pela inépcia e arrogância de seus habitantes. Atingira tal ponto a degradação daquele pequeno mundo – sete vezes menor do que a Terra, declararam –, que os sobreviventes tiveram de colonizar outro planeta e lá reiniciar sua civilização. A mesma tecnologia responsável por tanta destruição havia lhes concedido uma segunda chance. E, nessa nova etapa, foram lançados também novos alicerces, explicaram; não queriam ver repetida, nem em seu novo planeta e nem em outro, a catástrofe que, por um triz, não os havia dizimado.
Quando eles chegaram, tu insistias em dizer que algo não ia bem. Não importava que eles, em pouco tempo, tivessem conseguido debelar, com seu alerta e sua diplomacia, os últimos focos de tensão armada no oriente, que eles houvessem convencido as autoridades a destruírem as bombas de pósitrons ainda guardadas em arsenal, que eles estivessem, gradualmente, entrando em nossa sociedade, fundindo-se a ela, e conosco compartilhando sua notável tecnologia, capaz de produzir e executar muito mais com muito menos demanda energética, não, nada disso importava; vinhas a mim, beijavas minha boca – um beijo trêmulo, um quase-suspiro –, e falavas: isso não está bem.
Quem poderia concordar com essa tua visão até aquela noite?
De madrugada, fomos acordados pelo soar de alarmes em toda a cidade. Pela janela do apartamento, vimos, pouco depois, o firmamento incendiar-se com a luz dos inúmeros geóides que irrompiam aqui e ali, dissolvendo a escuridão; as últimas nesgas de céu noturno eram pontas de gelo negro agonizando em meio à fúria da lava escarrada por um súbito vulcão. No hológrafo ligado às pressas, um repórter pálido, em cenário de batalha, tentava dominar o pavor para informar que eles haviam deflagrado um motim contra os humanos, os quais, por sua vez, pacificados por conveniência, não tinham como se defender. Milhares de naves se aproximavam da Terra naquele instante. Antes de a imagem tridimensional desaparecer numa torrente de chiados e interferências, o repórter conseguiu ainda dizer: eles estão aprisionando os humanos e se utilizando do nosso próprio sistema de transporte para conduzir os cativos até um lugar ignorado.
Tu caíste de joelhos diante de mim, cingindo minhas pernas, e sussurrando o que, mais do que um desejo, era uma súplica lançada ao vazio: se é para morrer, quero morrer contigo. Os gritos já ecoavam mais alto do que os alarmes, e cada vez mais próximos, subindo as escadas, avançando pelo corredor. Deixei-me cair também. De repente, estrondos, e, na porta do quarto, dois vultos gigantescos, um relâmpago e mais nada.

Pesadelo superpovoado de vozes, uma nuvem de calor – sim, era o inferno. Eu sei, chorava alguém, sei o que vão fazer: vão nos transformar em comida, em cobaias. Por quê?, indagava uma pessoa mais rouca. O que fizemos?
Abri os olhos. Embora inconsciente até aquele momento, estava quase de pé no vagão abarrotado, e tu, por milagre, bem ao meu lado, ainda de pálpebras cerradas, o corpo mole oscilando com os movimentos caóticos daquela cáfila humana uniformizada na desgraça. O veículo perdia velocidade, parando. Passei meus braços ao redor do teu tronco e, mesmo nunca tendo acreditado em Deus, rezei para que tu não despertasses.
Porém, não foi assim. As portas da cabine se abriram, e tu retornaste exatamente quando eles chegaram.
Eram centenas contra as poucas dezenas de nós que saíam de cada vagão. Forçavam nossos passos adiante, por um estreito corredor, utilizando hastes metálicas que, a longa distância, emitiam centelhas elétricas. No tumulto, foi inevitável a separação: chamei teu nome, forcei os olhos na penumbra e, tendo, enfim, de aceitar a derrota, ainda juntei o que restava de mim e gritei uma jura de amor inútil, sufocada pela agonia de tantos. Naquele instante, não só a jura era em vão, o próprio sentimento tinha valor algum, impotente no confronto com a tragédia.
Cada indivíduo foi trancado em uma cela solitária, tão minúscula que as únicas opções são permanecer sentado ou deitar. Aqui neste galpão sem abertura alguma ao exterior, são centenas, talvez milhares delas, separadas em andares e baterias. A luz artificial, acesa o tempo todo, apenas varia em intensidade; tantas vezes me peguei rangendo dentes, sacudindo a cabeça e, quase em transe, implorando que ela se apagasse ao menos por um minuto. A temperatura aqui varia bastante e sem alternância lógica, como se as quatro estações disputassem perpétuo jogo de forças. Tudo programado, tudo para nos manter estimulados. Têm a mesma finalidade o papel e o lápis que me dão, e também esses sons que asfixiam: pássaros de mentira, chuva eletrônica, trovões computadorizados, ruídos diversos, fantasmas de uma realidade na música intermitente. Nenhum barulho, todavia, consegue se sobrepor aos gemidos dos prisioneiros e, menos ainda, ao trinado constante das correntes e engrenagens da Máquina. É assim que eles a chamam: a Máquina.
Sua estrutura de um anacronismo cruel ocupa toda a ampla área central do galpão. Começa em um trilho, ao longo do qual correm os ganchos em que as vítimas são presas pelos pés, de cabeça para baixo, uma procissão macabra de improváveis morcegos. Dali, chega-se à serra rotatória, peça responsável pela decapitação. As cabeças, não sei bem por quê, não são aproveitadas e, por isso, caem direto em um incinerador de detritos posicionado logo abaixo da lâmina. A próxima seção da Máquina é o tanque de escalda, um tonel de líquido em ebulição, onde são mergulhados os corpos para facilitar a posterior retirada da pele (infelizes aqueles que, em seu instinto de sobreviver, tentam se balançar ou dobrar o tronco para escapar da serra, pois acabam, muito feridos mas ainda conscientes, encontrando seu fim nesse borbulhante Aqueronte). A seguir, o tambor de escarificação, cilindro oco, posicionado na horizontal e revestido de lancetas móveis, que, girando em torno de seu eixo, com o agora indubitável cadáver em seu interior, remove-lhe a pele. Por fim, o picador, uma espécie de tubo onde os corpos são moídos grosseiramente ao mesmo tempo em que são centrifugados, a fim de separar o excesso de sangue e outros líquidos, os quais escorrem por canaletas até um grande ralo. O que resta, terminado o processo, são contêineres transbordantes de uma pasta vermelha, matéria viscosa formada pela anulação de centenas de seres que um dia existiram, experimentaram desejos e sensações, pisaram na Terra e nela tiveram seu lugar – tudo transformado, quando eles chegaram, em uma coisa única, sem forma, massa em que o próprio sentido da vida foi diluído.
Relendo o que escrevi acima, surpreendo-me comigo, com a quase-frieza do parágrafo. Mas minha percepção nem sempre foi assim, o tempo se encarregou de me fazer pedra (muitas semanas, sim; vários meses já? há quanto tempo estou aqui?). Mesmo a tua presença em meu pensar foi ralentando; uma heresia invocar a beleza da tua imagem e tuas mil sutilezas em uma mente tão conspurcada de sangue, tão mutilada pela violência.
Nos primeiros dias, não olhava para fora da cela, não enfrentava, de maneira alguma, a aterradora visão da Máquina, e a expressão, ou melhor, a ausência de expressão dos magarefes fazia-me gelar. Ao contrário do que se poderia supor, não tinham as faces contraídas de ódio ou qualquer vestígio de sadismo estampado nos rostos. Estavam ali indiferentes, envolvidos em um trabalho mecânico – transportar os humanos acorrentados até a Máquina, prendê-los nos ganchos, cuidar para que nenhum escapasse vivo –, apenas mais um trabalho como tantos outros. Essa apatia constante e a semelhança deles com a nossa própria espécie eram, sem dúvida, fonte maior de desconcerto e pânico.
Pânico, aliás, foi o que me acometeu logo na primeira vez em que eles trouxeram a ração. Reconheci, de pronto, naquela papa cheirando a azedo, pedaços de carne quase crua, púrpura. Cogitei morrer de fome. Mas nem para isso tive veias e paixão suficientes.
A última visão que tive de ti foi, creio, o estertor da minha capacidade de sentir. Quando passaste, esbatida entre tantas outras pessoas, sendo conduzida à Máquina, alguma coisa se agitou dentro do meu peito. Tive vontade de gritar teu nome, espremer meu corpo entre as grades, tudo isso por um segundo. Engoli as palavras abortadas junto com a pouca saliva de minha boca seca. A certeza da minha morte, pensei, era, naquele momento, o consolo que tinhas para encarar a tua própria.
Desde esse dia, estranhamente, tenho comido a ração com mais voracidade, e a carne parece mais tenra e adocicada. Os vômitos são também mais comuns; contudo, sinto que estou ganhando peso. Acho que eles vão gostar.
Quando eles chegaram, o abismo – holocausto.


Agradeço ao escritor Diego Lopes pela sugestão do argumento.