domingo, 25 de setembro de 2011

“O Planeta dos Macacos”: confluências entre humanidade, racionalidade e opressão

Rafael Bán Jacobsen

Em 1963, o engenheiro e escritor francês Pierre Boulle (Avignon, 20 de fevereiro, 1912 – Paris, 30 de janeiro, 1994) publicou o romance “La Planète des Singes” (“O Planeta dos Macacos”), obra de ficção científica que acabaria sendo mais conhecida do grande público através da sua adaptação cinematográfica de 1968, dirigida por Franklin J. Schaffner e estrelada por Charlton Heston. O livro de Boulle é um exemplo de crítica social por meio da distopia, isto é, trata-se de uma ficção cujo valor representa a antítese da filosofia utópica, descortinando alegoricamente mazelas humanas e sociais tais como a corrupção, o preconceito, a sede por poder, o totalitarismo e o autoritarismo.

Entre tantas possibilidades de leitura para o texto de Boulle, uma das mais ricas e menos debatidas é a crítica à dominação dos humanos sobre os animais não-humanos, especialmente no que diz respeito à polêmica questão da experimentação animal.

Resumidamente, o livro tem a forma de um diário de bordo escrito por um astronauta terráqueo chamado Ulysse Mérou, que, acreditando ser o último ser humano restante no universo, escreveu a sua história na esperança de que alguém a ache. Ele narra sua viagem até os arredores da estrela Betelgeuse, onde ele e seus companheiros de bordo descobrem haver um planeta muito similar à Terra, ao qual dão o nome Soror (“irmã”, em latim). Aterrissando no planeta, descobrem ser possível respirar-lhe o ar, beber-lhe a água e comer da vegetação local. Logo encontram outros seres humanoides no planeta, muito embora estes ajam primitivamente como chimpanzés e mostrem terrível aversão a instrumentos e objetos manufaturados em geral, razão pela qual atacam os astronautas recém-chegados, destruindo-lhes as roupas. De fato, é grande a surpresa dos terráqueos diante da “bestialidade” daqueles seres de aparência tão familiar:

Em algum momento durante a viagem, havíamos discutido nosso eventual encontro com seres vivos, e tínhamos vislumbrado com os olhos da mente criaturas monstruosas, disformes, com aspecto físico muito diferente do nosso, mas sempre imaginávamos, de modo implícito, a presença de uma mente. No planeta Soror, a realidade parecia ser bem o oposto: tínhamos de lidar com habitantes que se assemelhavam a nós em todos os aspectos físicos mas que pareciam completamente desprovidos do poder da razão. Esse era, deveras, o significado da expressão que eu havia achado tão perturbadora em Nova e que agora eu via nos demais: uma falta de reflexão consciente, a ausência de inteligência. (BOULLE: 1966, p. 31)

Uma interrogação que poderia inquietar Ulysse e seus companheiros de viagem frente a tal realidade é se esses seres, tão aparentemente humanos mas tão essencialmente esvaziados de tudo que, no senso comum, caracteriza o “ser humano” (linguagem, raciocínio, consciência), devem “contar como humanos”, ou seja, se esses seres devem, em tese, possuir o mesmo status moral dos homens civilizados que habitam a Terra. Dilema similar é colocado pelo biólogo Richard Dawkins, em seu recente livro Deus, um delírio, no trecho em que propõe uma interessante situação hipotética para analisar a “sacralização da vida humana” que é, muitas vezes, tomada como argumento por ativistas antiaborto:

(...) imagine que uma espécie intermediária, o Australopithecus afarensis, por exemplo, tivesse conseguido sobreviver e fosse descoberta numa área remota da África. Essas criaturas “contariam como humanas” ou não? (...) O absolutista (a favor da superioridade da vida humana) precisa responder à pergunta, para aplicar o princípio moral de garantir aos seres humanos um status único e especial, porque eles são humanos. No extremo, eles teriam que criar tribunais, como aqueles da África do Sul no apartheid, para decidir se um indivíduo específico deveria “passar como humano”.

Mesmo que se tente dar uma resposta clara para o Australopithecus, a continuidade gradativa que é característica inescapável da evolução biológica diz-nos que tem de haver algum intermediário que fique suficientemente perto do “limite” a ponto de obscurecer o princípio moral e destruir seu absolutismo. Um jeito melhor de dizer isso é afirmando que não há limites naturais na evolução. A ilusão de um limite é criada pelo fato de que, por acaso, os intermediários evolutivos estão extintos. (...) O fato da evolução derruba de forma devastadora a discriminação moral absolutista. (DAWKINS: 2007, p. 386-387)

Entre tantas descobertas, os astronautas terráqueos não têm muito tempo para indagações e estabelecem-se com os humanos primitivos por alguns dias, na esperança de que possam civilizá-los, e Ulysse apaixona-se por uma deles, a qual passa a chamar de Nova. Porém, certo dia, uma inesperada situação se impõe, um acontecimento que ilustra de maneira ainda mais dramática o latente dilema das nebulosas fronteiras do humano: surge um grupo de caçadores na floresta, consistindo de gorilas, orangotangos e chimpanzés que se vestem como os humanos da Terra e usam armas e máquinas. Os caçadores alvejam vários dos humanos por pura diversão e capturam outros, inclusive o protagonista, o qual, analisando o comportamento dos símios, observa:

Eu havia acompanhado a mudança na sua expressão desde o momento em que foi alertado pelo ruído e registrei vários aspectos surpreendentes: antes de mais nada, a crueldade do caçador perseguindo sua presa e o prazer febril que obtinha desse passatempo; mas, sobretudo, o caráter humano de sua expressão – nos olhos desse animal, havia uma fagulha de entendimento que eu havia em vão buscado nos homens de Soror. (BOULLE: 1966, p. 42)

É digno de nota que, no texto, o “caráter humano” de um habitante de Soror apareça inserido em uma cena de violência, justaposto à perversidade, sinalizando que, talvez, a verdadeira essência do humano não seja pureza, nobreza ou qualquer qualidade elevada do espírito.

Enquanto a maioria dos humanos apreendidos pelos caçadores é vendida para trabalhos manuais, o protagonista e Nova acabam em uma instituição de pesquisadores que fazem experimentos sobre a inteligência humana. É apenas nesse momento que os questionamentos de natureza biológica e moral começam a perpassar a mente de Ulysse:

Homens! De que raça eram então os seres que os macacos haviam matado e capturado? Algum tipo de tribo atrasada? Se era esse o caso, quão cruéis eram os soberanos desse planeta ao tolerar e talvez decretar tais massacres! (BOULLE: 1966, p. 53)

No centro de pesquisas, as habilidades e a capacidade cognitiva de Ulysse chamam a atenção da Dra. Zira, uma chimpanzé que ali trabalha como pesquisadora. Pouco a pouco, Ulysse revela a Zira todo o seu conhecimento e a verdade sobre sua origem. A partir de então, em segredo, Zira passa a ensiná-lo a língua símia e diversas coisas acerca do planeta dos macacos, sua história, sua política, sua ciência.

Em seus diálogos com Ulysse, Zira revela muito de como os macacos enxergam a si próprios, e essa autoimagem, idealizada e divinizada, é perfeitamente análoga à nossa concepção religiosa do “homem concebido à imagem e semelhança de Deus”:

‘O que você acha?’, ela disse. ‘O macaco é, obviamente, a única criatura racional, a única que possui uma mente e também um corpo. Mesmo os mais materialistas dentre os nossos cientistas reconhecem a essência sobrenatural da mente símia. (BOULLE: 1966, p. 83)

Em dado momento, Ulysse conhece o noivo de Zira, chamado Cornélius, um cientista jovem porém muito conceituado. Embora os chimpanzés Zira e Cornélius estejam convencidos de que Ulysse é um ser racional, os orangotangos, que regem a sociedade, acreditam que ele finja entendimento da língua, porque a sua filosofia não permite pensar em humanos inteligentes. Com a ajuda de Cornélius, Ulysse consegue a oportunidade de fazer um discurso em uma conferência anual de biologia, diante de diversos cientistas, jornalistas e autoridades do mundo símio. Essa passagem do romance é especular e, portanto, complementar ao conto “Informação para uma Academia”, do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), que narra a história de Pedro Rubro, um macaco educado que comparece perante os membros de uma academia para contar a história de sua vida, de sua ascensão de fera a algo próximo do homem. Com a figura de um macaco falante, de gravata-borboleta, smoking e com o bloco de notas da palestra em punho, Kafka derruba a autoproclamada fronteira que o homem estabelece entre si e as demais espécies de animais. Ao final de sua narrativa, o macaco Pedro Rubro, já perfeitamente humanizado e educado, reflete sobre a sua transformação e sobre o que ganhou com ela. Sua constatação é pouco alentadora para a espécie homo sapiens. Ao conquistar tudo que julgamos relevante (conforto, reconhecimento, vida social agitada, um relacionamento conjugal), Pedro parece encarar tudo com um grande vazio – a vida humana em nada é mais valiosa do que a sua prévia vida simiesca:

Se com uma vista de olhos examino toda minha evolução e o que foi seu objetivo até agora, nem me lamento dela, nem me dou por satisfeito. Com as mãos nos bolsos da calça, com a garrafa de vinho sobre a mesa, recostado ou sentado a meias na cadeira de balanço, olho pela janela. Se chegam visitas, recebo-as como se deve. Meu empresário está sentado na antecâmara: se toco a campainha, acode e escuta o que tenho a dizer-lhe. De noite quase sempre há função e obtenho êxitos já mal superáveis. E se ao sair dos banquetes, das sociedades científicas ou das gratas reuniões entre amigos, chego à casa a horas avançadas da noite, ali me espera uma pequena e semiamestrada chimpanzé, com quem, à maneira simiesca, passo muito bem. De dia não quero vê-la, pois tem no olhar essa loucura do animal perturbado pelo amestramento; isso unicamente eu o percebo, e não posso suportá-lo. . (KAFKA: s/d, p. 105/106)

Ulysse, em seu discurso, percorre caminho inverso ao de Pedro Rubro, narrando as circunstâncias que o levaram da condição de criatura racional e civilizada a uma bestialidade imposta e da qual, através de seu depoimento, buscava escapar.

Após esse evento, tendo sua racionalidade reconhecida, Ulysse recebe roupas para vestir, é retirado de sua jaula, passando a viver em um quarto no centro de pesquisas e começa a auxiliar os chimpanzés em suas experiências com humanos. É então que Ulysse descobre que os experimentos que os macacos realizam vão muito além dos testes psicológicos de capacidade cognitiva e condicionamento: em Soror, os homens são utilizados em cruéis práticas de vivissecção.

Aquele humano tivera toda uma zona da área occipital removida. Não podia mais distinguir a distância ou a forma dos objetos, uma inabilidade que manifestava através de uma série de gestos desordenados cada vez que uma enfermeira se aproximava dele. Era incapaz de desviar de um sarrafo colocado no seu caminho. (...)

Com meu estômago pesando por essa sucessão de horrores acompanhados pelos comentários de um chimpanzé risonho, eu vi homens parcial ou totalmente paralisados, outros artificialmente privados da visão. (...)

‘Aqui,’ ele disse com ar misterioso, ‘nós fazemos pesquisas mais delicadas. Não é mais o bisturi que entra em ação, é algo bem mais sutil – estimulação elétrica de certos pontos do cérebro. Desenvolvemos alguns experimentos notáveis. Vocês fazem esse tipo de coisa na Terra?’

'Sim, nos macacos!’ eu retruquei em fúria. (BOULLE: 1966, p. 153)

A fúria de Ulysse diante de tais práticas é imediata e pouco racionalizada; porém, o que há por trás desse sentimento nada mais é do que a percepção intuitiva de que aqueles humanos, mesmo privados de linguagem, de racionalidade, de plena cognição, possuem sensibilidade, capacidade de sofrer ou sentir prazer e de valorar tais experiências como boas ou más – elementos esses que condicionam direitos naturais tais como o direito à vida, à liberdade, à integridade física. A fúria de Ulysse é a manifestação primeira de uma aversão moral frente a uma prática antiética.

Pode-se dizer que, vivenciando o reverso da situação que ocorre no planeta Terra, onde macacos são vitimados em experimentos similares, Ulysse é forçado ao mais legítimo exercício ético, ou seja, colocar-se no lugar do outro, analisar a ação em questão e avaliá-la como boa ou má não do ponto de vista daquele que pratica a ação, mas sim da desprivilegiada posição daquele ser que sofre seus efeitos e consequências. Assim, Ulysse reaprende o que jamais poderia ter esquecido desde que encontrara os macacos racionais pela primeira vez, desde que os vira caçando impiedosamente os humanos: o planeta Soror não é um lugar amigável ou sequer seguro para seres humanos, assim como a Terra não é um lugar em que os animais não-humanos possam viver suas vidas com plenitude e liberdade. Seja em que lugar do cosmos for, o que restaria à racionalidade senão colocar a si mesma em um trono e, do alto dele, praticar dominação sobre todo o resto?

A partir daí, a trama se encaminha para seu desfecho. A tranquilidade e a segurança conquistadas pelo protagonista depois de seu discurso na conferência ficam ameaçadas quando as autoridades símias descobrem que a humana primitiva Nova, ainda confinada no centro de pesquisas, está esperando um filho de Ulysse, o qual, cogitam, sendo o início de uma potencial linhagem de humanos racionais, pode vir a constituir um perigo ao futuro da sociedade símia e seu domínio sobre os homens.

Sem revelar detalhes do epílogo, cabe ressaltar que, até o final, o romance de Boulle consegue surpreender e entreter ao mesmo tempo em que suscita questionamentos filosóficos: de onde vem a resistência que nós, indivíduos da espécie homo sapiens, temos em aceitar que somos apenas animais e que tantos outros animais são tão moralmente relevantes quanto nós mesmos? Negar a existência dessa dimensão que se pode denominar “racionalidade”, “alma” ou “psiquismo” nos animais não seria uma forma de exercício de poder e mecanismo de dominação, assim como já foi perpetrado por nós, humanos, contra outros grupos humanos? Quão íntima é a relação entre “humanidade”, “racionalidade” e “opressão”?

Referências:

BOULLE, Pierre. Monkey Planet. Harmondsworth: Penguin Books, 1966.

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007.

KAFKA, Franz. A Colônia Penal. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/d.