sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Os mais invisíveis do mundo



Leonardo Ortegal



Eles estão entre nós. Não são os ET´s, e estão invisíveis. Não são pretos, nem putas, mas nos servem como escravos há séculos, e tem seus corpos atravessados, como objetos, para a satisfação de nosso desejo hedonista.

Eles são tratados do jeito que se trata as minorias: suas necessidades são subjugadas, suas dores, menosprezadas, e sua fragilidade se transforma em degraus para que passem em ascensão aqueles que detém o poder. Mas acontece que, como várias minorias, eles não são minoria. Na verdade eles já chegam a ser maioria, como uma manifestação epidêmica da nossa própria doença.

O Brasil é um país enorme, mas mesmo assim são muitos os homens que não possuem um teto para morar, ou um pedaço de chão para cultivar. Esse paradoxo se mistura a um outro, pois esse mesmo país que abriga 190 milhões de cabeças humanas, e deixa milhões sem ter onde dormir ou cair morto é o mesmo país que oferece terra, água, abrigo, alimento e assistência médica a mais 200 milhões de cabeças que não são humanas, mas são animais.

Animais não humanos, que vivem nas terras do mundo, e vem e vão como estalos errantes. Hoje se entra em setembro, e não passará o mês sem que morram aos milhares sem fim as galinhas ‘adultas’ que, ontem ainda, saíram do ovo. Tiveram suas vidas acachapadas, seus anos reduzidos a pobres semanas de clausura. Cruzaram o Brasil sobre rodas de enormes carretas, no vento, no sol, no frio e na chuva, e ninguém viu. Seus corpos banhados com óleo e queimados na chapa, servidos nos pratos, tragados aos tratos digestórios dos homens, e ninguém as notou. Setembro será mais um mês. Um rio Araguaia de sangue de aves correu no país, e que venha outubro em seus ventos de morte.
Na Europa os homens têm bom coração. Se compadecem das barrigas em fome, e chegam a pagar ao Brasil para que faça mais soja - nem que para isso precise tornar em cinzas os verdes frondosos da nossa Amazônia. Barrigas tem fome e precisam comer. São vacas e bois aos milhares, que, desafortunados, não contam com o pasto abundante do nosso país. Mas contam com a soja abundante, com o cheiro da fumaça do cerrado que agora é deserto, e vai de navio até suas bocas. Comida importada. Até que não são tão invisíveis assim.

O mundo tem cheiro de diesel. Diesel e peido. O peido assassino que lhe queima os cabelos das narinas até pode ter vindo do seu colega de trabalho. Mas o peido potente, o metano que queima a camada de ozônio e transforma o planeta em estufa, é obra dos cus invisíveis. A usina de flato animal tem filiais espalhadas nos quatro cantos da terra, e consegue poluir os ares mais do que todos veículos a motor desse mundo, é o que dizem as Nações Unidas. Produção diuturna de gases invisíveis, só não tão invisíveis quanto os seus próprios emissores.

Decapitação, eletrocussão, esquartejamento, degolação. Vivemos o enredo de um filme de terror onde o sangue não é de tomate. Um festival doentio de mortes, cuja variedade e criatividade sádica põe catatônicos os mais bizarros roteiristas de todos os tempos. Caldeiras de água fervente para o mergulho dos vivos, serras para extirpar bicos, para extirpar testículos, máquinas de empurrar maisena e gordura de porco direto nos fígados, e um imenso triturador, para transformar os nascidos defeituosos, ainda vivos, em ração para os demais. São estes alguns dos itens da trama de Os mais invisíveis do mundo, o thriller que nunca saiu de cartaz, e que ninguém se propõe a assistir.



(publicado também no jornal O MIRACULOSO)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Sabe de uma coisa?

Sabe de uma coisa? Essa foto tem conteúdo impróprio. Alguns argumentariam: “é um absurdo!”; e mudariam para um sítio de pornografia pacífica e cristã. Outros, estupefatos, talvez empreendessem uma corrida frenética para a cozinha, em busca dos nuggets remanescentes, para realizar o bom e velho “croc-croc”. Certamente, esta imagem pode espremer os calos do pé esquerdo de um cidadão maravilhosamente ordinário. E, comumente, provocaria a ira de bastiões da “magnânima” evolução da espécie humana. Pintariam-me abjeto nos comentários: “Maldito vegan hipócrita!”; “Com certeza não tem mãe!”; “Tu és um exemplo de capitão fascista!”. E como vingança pessoal, engoliriam um bife a seco, sem mastigar e – logo após – exalariam gazes triunfantes de alegria, delirando em poema decorado: “Eu não ligo! Eu não ligo!”.

E, depois, embevecidos de um aroma particular, voltariam para uma existência própria e financeiramente objetiva: o sono não remunerado. Como o sexo é vendido nas esquinas, o sono é a única capacidade inexoravelmente não-comercial do ser humano; não se pode vender, nem comprar. Ou se tem ou não tem; está com ele ou não está. É nele que vive o sonho, patético, algoz da realidade insuportável. Nesta atmosfera idílica, surge um desejo, impossível a todos os seres. O bastião da moralidade churrasqueira sugere para si, em sonho, um inexorável bife. Uma peça que simboliza quase um monumento em homenagem à baba que escorre no canto esquerdo da boca humana. E nesse filé, magnânimo em sua forma, não existe o azulejo branco como sangue, as tripas correndo para fora, o grito de dor. É uma peça inocente, mais doce que Marília de Dirceu e Inocência besuntadas em melado de cana. Irônica como uma mentira deve ser. Por mais determinado que seja o sujeito, ninguém sonha – nem mesmo o mais convicto dos defensores da supremacia humana – com um suposto abate orgástico e emocionante de um animal que agoniza. O sofrimento algumas vezes é o contra-senso do prazer, e o prazer é egoísta...