quinta-feira, 30 de julho de 2015

Sentinelas

Rafael Bán Jacobsen

Tu abres a porta com um ranger ferido e enxergas o apartamento vazio, congelado na luz cinza da manhã. Sombras de quadros e móveis restam impressas nas paredes; as tábuas do piso exibem arranhões de velhas coisas arrastadas e de passos ausentes, como se pedissem misericórdia. A família foi levada há quase um mês, compartilhando o destino de todas as outras no mesmo prédio – e de tantas mais que também habitavam o gueto. É assim: para além dos muros, apenas sob a mira dos soldados.
No batente, a mezuzá[i] continua à espera de reverência. Tu a tocas para depois beijar os dedos em instante de arrepio. Um passo adiante, o estalo da madeira e um latido cortado de dor. Acordes de raiva assomam por trás do alarme, aos estilhaços. Apesar da advertência, avanças pela sala pequena em direção ao quarto, até que o espectro do cachorro vem ao teu encontro, aguerrido mesmo na imprecisão das três patas que lhe sobram, a quarta levantada, contraída em torno de um furo de bala. Monstros, tu murmuras, enquanto estendes a mão em convite manso. A resposta vem com outro latido, esgarçado entre os dentes agora expostos, e o cão recua.
Surgem lembranças de todas as ocasiões em que o viste levado pela coleira, perambulando nas ruas do gueto junto ao menino mais novo ou ao calado pai. A pelagem tinha uma uniformidade castanha de açúcar queimado, cobrindo a musculatura orgulhosa e plena de movimentos, que te impressionava tanto quanto a postura de guardião. Agora, porém, encontras um corpo magro, parecendo suspenso pelas vértebras pontiagudas, mal cobertas por raros amarelados – animal cingido de tremores e exilado na própria fome. Quase um mês. Mesmo assim, há força para o embate, e ele rosna a impaciência de expulsar o intruso que vê em ti. Insinuas dobrar os joelhos – talvez, à mesma altura que ele, possa haver concórdia –, mas o cão se coloca em posição de ataque. Vem comigo, tu falas no ritmo lento das promessas, eu só quero ajudar. Inclinado à frente, em face ao confronto, tu vês, nas pupilas enevoadas que em ti se prendem, uma fúria que não consegue faiscar porque, no íntimo, é desamparo. Tecendo e destecendo fios de solidão e fome, ele espera o retorno dos seus, desconhecedor da nau presa a trilhos sem redenção, dos gigantes canibais que aprisionam em seus ventres de arame farpado, do canto volátil e venenoso das sereias, do ciclope que abre seu imenso olho vermelho sobre o gueto, sobre Varsóvia, sobre o mundo.
Riscando as laterais do focinho, lágrimas secas testemunham a liquidez perdida dos dias cheios, falam de uma certeza de adeus. O cão sabe e quer esperar. Joga as patas dianteiras à frente enquanto empina a cauda, como se cruzasse espadas. Por três vezes ainda, exclama seu édito de banimento em agudos assombrados, reivindicando para si a posse do universo desfeito que ousaste invadir. Depois, como se lesse em tua inércia a compreensão última do sacrifício, retorna por onde veio. E o gesto te enche de espanto, porque é escolha.
Tu retrocedes, suspirando vertigens, querendo entender teu diálogo com a renúncia. Fechas a porta para tanta fidelidade e, no desamparo que sufoca enquanto te afastas, chegas a ignorar a mezuzá, sentinela muda e sem sangue.





[i] Rolo de pergaminho que contém duas importantes passagens bíblicas e que é posto em um estojo fixado no batente direito das portas. A mezuzá deve ser afixada no umbral direito de cada dependência do lar, sinagoga ou estabelecimento judaico, como lembrança do Criador. Os judeus costumam beijar a mezuzá toda a vez que passam pela porta, para lembrar as orações que estão contidas ali dentro e os princípios do judaísmo que elas carregam. O estojo costuma ser decorado com a letra hebraica “shin”, que é a letra inicial da frase “shomer dlatot Israel” (“guardião das portas de Israel”).