quinta-feira, 30 de julho de 2015

Sentinelas

Rafael Bán Jacobsen

Tu abres a porta com um ranger ferido e enxergas o apartamento vazio, congelado na luz cinza da manhã. Sombras de quadros e móveis restam impressas nas paredes; as tábuas do piso exibem arranhões de velhas coisas arrastadas e de passos ausentes, como se pedissem misericórdia. A família foi levada há quase um mês, compartilhando o destino de todas as outras no mesmo prédio – e de tantas mais que também habitavam o gueto. É assim: para além dos muros, apenas sob a mira dos soldados.
No batente, a mezuzá[i] continua à espera de reverência. Tu a tocas para depois beijar os dedos em instante de arrepio. Um passo adiante, o estalo da madeira e um latido cortado de dor. Acordes de raiva assomam por trás do alarme, aos estilhaços. Apesar da advertência, avanças pela sala pequena em direção ao quarto, até que o espectro do cachorro vem ao teu encontro, aguerrido mesmo na imprecisão das três patas que lhe sobram, a quarta levantada, contraída em torno de um furo de bala. Monstros, tu murmuras, enquanto estendes a mão em convite manso. A resposta vem com outro latido, esgarçado entre os dentes agora expostos, e o cão recua.
Surgem lembranças de todas as ocasiões em que o viste levado pela coleira, perambulando nas ruas do gueto junto ao menino mais novo ou ao calado pai. A pelagem tinha uma uniformidade castanha de açúcar queimado, cobrindo a musculatura orgulhosa e plena de movimentos, que te impressionava tanto quanto a postura de guardião. Agora, porém, encontras um corpo magro, parecendo suspenso pelas vértebras pontiagudas, mal cobertas por raros amarelados – animal cingido de tremores e exilado na própria fome. Quase um mês. Mesmo assim, há força para o embate, e ele rosna a impaciência de expulsar o intruso que vê em ti. Insinuas dobrar os joelhos – talvez, à mesma altura que ele, possa haver concórdia –, mas o cão se coloca em posição de ataque. Vem comigo, tu falas no ritmo lento das promessas, eu só quero ajudar. Inclinado à frente, em face ao confronto, tu vês, nas pupilas enevoadas que em ti se prendem, uma fúria que não consegue faiscar porque, no íntimo, é desamparo. Tecendo e destecendo fios de solidão e fome, ele espera o retorno dos seus, desconhecedor da nau presa a trilhos sem redenção, dos gigantes canibais que aprisionam em seus ventres de arame farpado, do canto volátil e venenoso das sereias, do ciclope que abre seu imenso olho vermelho sobre o gueto, sobre Varsóvia, sobre o mundo.
Riscando as laterais do focinho, lágrimas secas testemunham a liquidez perdida dos dias cheios, falam de uma certeza de adeus. O cão sabe e quer esperar. Joga as patas dianteiras à frente enquanto empina a cauda, como se cruzasse espadas. Por três vezes ainda, exclama seu édito de banimento em agudos assombrados, reivindicando para si a posse do universo desfeito que ousaste invadir. Depois, como se lesse em tua inércia a compreensão última do sacrifício, retorna por onde veio. E o gesto te enche de espanto, porque é escolha.
Tu retrocedes, suspirando vertigens, querendo entender teu diálogo com a renúncia. Fechas a porta para tanta fidelidade e, no desamparo que sufoca enquanto te afastas, chegas a ignorar a mezuzá, sentinela muda e sem sangue.





[i] Rolo de pergaminho que contém duas importantes passagens bíblicas e que é posto em um estojo fixado no batente direito das portas. A mezuzá deve ser afixada no umbral direito de cada dependência do lar, sinagoga ou estabelecimento judaico, como lembrança do Criador. Os judeus costumam beijar a mezuzá toda a vez que passam pela porta, para lembrar as orações que estão contidas ali dentro e os princípios do judaísmo que elas carregam. O estojo costuma ser decorado com a letra hebraica “shin”, que é a letra inicial da frase “shomer dlatot Israel” (“guardião das portas de Israel”). 

domingo, 23 de setembro de 2012

Poema de Vigília

Olá pessoal. Sei que o Blog anda meio morto, mas hoje aconteceu uma coisa que me deu inspiração para continuar. Escrevi e recitei um poema para introduzir a vigília do Weeac - Dia mundial pelo fim da Crueldade e Exploração Animal. O fiz sem pretensão alguma, apenas como um desabafo vegano. Acontece, que meus versinhos tocaram algumas pessoas e movido por isso os posto aqui em homenagem a todos os seres sencientes que sofrem a opressão humana e a todos os militantes pelos direitos animais.

Abraço a todos.


Poema de Vigília (Daniel Kirjner)


Hoje o sol nasceu na cor vermelha.
Não pelo desvio da Luz
que o desvario ótico conduz
a um delírio em cada centelha.

Seu brilho rubro, neste dia,
é o luto ao oculto que jaz nos prados,
nos circos, almas e supermercados,
no verbo inaudível de uma cela fria.

E, olhando o firmamento,
eu, que nada de Deus acredito,
chorei uma oração castrada de mito,
de palavras sagradas jogadas ao vento.

Lembremos daqueles que habitam os pratos,
que jazem partidos por preços baratos,
privados no ventre do gosto da vida.

Lembremos daquela de quem tomaram o leite,
a quem estupraram com o punho do açoite,
roubando seus filhos de sua acolhida.

Lembremos dos filhos, apenas crianças,
produtos da fome, fetos sem herança,
bebês engolidos na fome dos séculos.

Lembremos do escravo do homem do circo,
elefante enforcado em nó corrediço,
por quebrar com coragem a corrente sem elos.

Lembremos do bico do frango sem luz,
ceifado da face pela mão que o conduz
a uma vida de ovos rolados no abismo.

Lembremos dos gatos, cachorros de rua,
tirados do seio da verdade nua
e levados à morte febril do facismo.

Lembremos da dor do bicho-ciência,
batizado no pus, posto em penitência,
pela lâmina fria que viola o abdome.

Lembremos da morte do bicho sem pele,
que adorna inerte os ombros das mulheres
que ostentam o nada e riem da fome.

Hoje tentamos ser dor, ser esperança.
Fagulhas verdes que se põem com o sol,
a pele no ombro, o touro espanhol,
o gato, o cachorro, a mãe e a criança.

Hoje somos nervo, vela e carniça
que grita um verso que nunca é ouvido
pois é soterrado no cego sentido.
Quando a morte é piada, gritamos justiça.

Pode ser pretensão, ou sonho comum,
da mente insensata, dita radical,
mas vamos lutar por um sonho afinal,
que muitos desprezam como sonho nenhum.

Então nesse dia, ou em todos do ano,
dizemos com orgulho de olhos marcados
que trazemos a alma e o pulso cerrado
fazendo a vigília de um sonho vegano.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A Carne é Fraca

Rafael Bán Jacobsen


Diversas pesquisas têm apontado uma correlação entre violência contra humanos e contra animais não-humanos. Uma das mais dramáticas evidências dessa ligação é o fato de os índices de violência serem usualmente mais elevados em cidades onde há abatedouros.

A professora de criminologia Amy Fitzgerald, pesquisadora da Universidade de Windsor, no Canadá, baseada em pesquisas recentes, afirma que as estatísticas com relação entre matadouros e crime brutal são um fato empírico. Trabalhando com os números divulgados pelo FBI sobre crimes cometidos em 581 municípios dos Estados Unidos entre 1994 e 2002, a pesquisadora montou um gráfico que mostra que, quando o número de trabalhadores num matadouro de uma comunidade aumenta, a taxa de criminalidade também aumenta. Mais detalhes sobre esse tipo de estudos podem ser encontrados aqui:

http://www.vidavegetariana.com/site/noticias.php?page=noticias/331

O conto a seguir apropria-se livremente desse fato para tecer ficção.


A CARNE É FRACA


Clemenciano sempre gostou de carne fresca. Apreciava me contar sobre a infância na fazenda dos avós, onde fora iniciado por um capataz nos mistérios do abate. Não tinha sequer idade para vestir calças, e suas mãos já compreendiam, em plenitude, a mecânica da morte. Três vezes por semana, sob a supervisão do capataz, pegava uma galinha dessas de pátio, comedoras de milho e que ciscam atrás de minhoca, e torcia o pescoço dela, que ficava corcoveando atirada ao solo, curiosamente atraindo a atenção dos galos do terreiro, que se lançavam com ânsia sobre a ave agonizante, bicando-a. Em datas especiais, o espetáculo era ainda maior: pendurava-se, pelas patas traseiras, nos galhos de um frondoso umbu, um porco cevado e cravava-se a faca direto no coração – enquanto ressoava um berro que mais parecia de criança, o sangue, matéria-prima de morcelas e linguiças, jorrava em arco vináceo, para ser colhido em uma bacia. O ápice, o verdadeiro êxtase, porém, era o abate, desmembramento e corte dos bovinos; às vezes, Clemenciano ficava, horas a fio, descrevendo o processo, desde as marretadas entre os olhos até o armazenamento da carne. Confesso que tais preleções me perturbavam; era como se eu já intuísse tudo o que ele era capaz de fazer. O pior era quando, à mesa do jantar, repetia a história dos vitelos: na fazenda de sua meninice, os novilhos eram apartados bem cedo das mães e mortos em poucos meses; assim, pouco desenvolvidos, sem músculos, transformavam-se em bifes levemente rosados e macios, desses de cortar com colher. Certa noite, enquanto nos preparávamos para deitar, eu vestindo a camisola e ele, ao toucador, lavando o rosto, contou-me da tarde em que ele e o capataz, ao eviscerarem uma vaca, depararam com o feto, quase um fantasma desenhando-se através da membrana uterina. O próprio Clemenciano tratou de retirá-lo da bolsa e separá-lo da placenta. Percebeu que a criatura já tinha quase dois palmos, aquele bezerrinho de pele nua e translúcida, de olhos cerrados. Então, meu marido completou: “Ele se mexia, Diva, muito pouco, mas mexia; até parece que respirava. Cortei a cabeça com um machado. Foi o melhor vitelo, a carne mais tenra que provamos; meus avós elogiaram; eu e o capataz não revelamos que era um natimorto. Foi mais um de nossos segredos.” Naquele momento, inspetor, o que era só asco e desconforto tornou-se medo.

13 de outubro de 18** - Vendas: dez libras de carne suína, um quarto bovino dianteiro, três carcaças de frango. Compras: dez achas de lenha para o defumador, um rolo de barbante, uma pedra de amolar, cinco angolistas de tamanho médio (na gaiola). Em casa, Diva continua a esquivar-se; ontem à noite, rejeitou-me com uma desculpa qualquer, o que, aliás, tem se repetido com frequência. Ao menos, não descuida dos afazeres do lar: depois da ceia, um pernil assado com batatas, encontrei os lençóis bem engomados e recendendo a alfazema e alecrim. Amanhã, deve chegar o sobrinho dela; Tomás, treze anos, um bom menino, ela diz, disposto a auxiliar-me no açougue enquanto tiver pouso em nossa casa. Um bom menino. Espero que assim seja. Diva falou que escolho mal os meus ajudantes, por isso os dois anteriores sumiram sem dar satisfações. Afirma que Tomás é muito responsável e não trará dores de cabeça. Tece tais comentários em tom casual, mas há um rútilo intruso em suas pupilas, asseverando que Diva sabe de coisas que não ousa dizer.

A morada de tia Diva era maior do que eu pensava: no térreo, a casa de carnes; no segundo andar do sobrado, as arejadas salas, os quartos, o banheiro de azulejos pintados e a cozinha, com seus odores de louro, esfregão e banha. Senti-me quase à vontade: tia Diva se parece muito com a minha mãe – que Deus a tenha! –, e isso é bom; no entanto, o Sr. Clemenciano, logo à primeira vista, não me inspirou simpatia. Não sei explicar o porquê: talvez a barba cerrada e cor de chumbo, o olhar anoitecido, as costas arqueadas e os dedos rijos de tanto trabalhar, curvado, de cutelo em punho, sobre a tábua de cortar carne. Foi exatamente essa a primeira visão que dele tive: o homem corpulento, brandindo a lâmina em golpes fortes e ritmados, fazendo voarem, sobre a mesa ensebada, as rodelas de ossobuco. Era uma tarde quente, e eu estava exausto por causa da viagem – creditei a esses fatores o mal-estar que se apossou de mim. O Sr. Clemenciano se achava tão absorto em seu ofício que não percebeu quando entrei, acompanhado por tia Diva. Além das batidas secas do cutelo, ouvia-se apenas o zumbido de uma nuvem de moscas que pairava sobre as caixas de fatos de boi e o ranger longínquo das rodas de alguma carroça. Mesmo quando a tia o chamou, ele não teve pressa em vir ao nosso encontro. Lentamente, esfregou as mãos no avental repleto de manchas e, calado, estendeu-me a destra em cumprimento. Hesitei por um átimo, mas engoli a repugnância e retribuí a saudação (precisava me acostumar, afinal aquele seria meu trabalho, pelo menos por um ano). Elevou as sobrancelhas, e foi como se os olhos cor de musgo me sorvessem, a contragosto, um pouco da alma. Arrepiado, escutei a melodia de sua voz cava: “Prazer, Tomás; prazer em conhecer-te.”

Sim, inspetor: quando conheci Clemenciano, aqui mesmo na cidade, ele já era dono do açougue atrás da igreja, na Rua do Carmo. Difícil explicar o que me fez aceitar sua proposta de casamento. Eu era uma normalista sem noção alguma da vida para além dos muros da escola das irmãs. Eu tinha apenas dezesseis anos e um futuro esvaziado de sonhos; ele já se aproximava dos quarenta, comerciante bem estabelecido, e a ideia de não precisar pensar no amanhã talvez tenha sido sedutora para mim. Nossa vida conjugal nunca foi o éden pressuposto, nem mesmo nos primeiros anos. Confesso que eu não gostava quando ele me fazia carinhos com as mãos ásperas, que me intimidava o volume do seu corpo maduro, que era sufocante o contato com seus pelos, principalmente os do rosto, que arranhavam; além disso, agia com rudeza e, por vezes, me machucava. Todavia, jamais deixei de cumprir com meus deveres de esposa, exceto nos últimos tempos, quando as minhas suspeitas e, depois, as certezas aniquilaram qualquer possibilidade de entrega. Foram vinte anos, inspetor, duas décadas dividindo a alcova com um demônio.

21 de outubro de 18** - Poucas vendas: três libras de carne bovina moída, um frango inteiro, quatro peças de presunto. Doação de uma costela de ovelha e um lombo suíno para o orfanato paroquial. Dez frangos abatidos e depenados. Sete rolos de linguiça colocados no defumador. Quarto dia de trabalho com Tomás (pela manhã, assiste às aulas no liceu; à tarde, permanece à minha disposição). Pedi a ele que removesse as moelas dos frangos recém-sangrados, conforme ensinei, e, tão logo rasgou o primeiro deles com a faca, saiu correndo para vomitar junto ao muro do quintal. Melhor deixá-lo na limpeza do balcão, no atendimento à freguesia (vi, ontem, que estava trêmulo pelo simples fato de ter de arrancar as penas das galinhas e escaldá-las). Um menino tão fraco. Mas não será assim por muito tempo: ele logo aprenderá as necessárias lições. Seja como for, parece-me o mais interessante até agora, e eu não costumo me enganar.

No princípio, não foi nada fácil o trabalho no açougue. Não só por causa do fartum, da sujeira toda, dos animais mortos, mas também pelo Sr. Clemenciano. Inquietava-me o contraste entre a rispidez com que, em geral, me tratava e os olhares que, vez por outra, ele me lançava. Não fosse absurdo, eu diria que era um olhar paternal. Contudo, o tempo se encarrega de dar formas novas a tudo que achar por bem remodelar, e nossa relação foi se tornando mais amistosa. Lembro-me do exato momento em que essa mudança começou. Eu já estava há quase duas semanas em minha nova rotina, e o Sr. Clemenciano decidiu me ensinar alguns cortes de carne. Colocou-me diante de um volumoso naco de fiambre, róseo, marmoreado de veios de gordura branca, e mostrou, antes de mais nada, como segurar a faca da maneira correta. Apontou, então, as discretas ranhuras da carne: “Deves cortar no sentido das fibras, cada fatia com uma polegada.” Mal comecei a mover a faca, e ele interveio: “Não, não, está errado; vou te mostrar.” Foi inevitável o sobressalto quando ele colou às minhas costas e agarrou, com firmeza, minhas mãos, guiando-as na execução dos talhos. “Assim, olha, não é difícil”, falava por sobre o meu ombro, seu hálito exalando tabaco e bebida. De repente, sem que percebesse, minhas mãos já haviam assimilado aquela nova dinâmica e seguiam sem ajuda. Meus lábios arquearam-se de contentamento – eu, ali, já não era mais um estranho. Então, muito sério, o Sr. Clemenciano ralhou, chamando minha atenção para uma profunda verdade: “Para com isso, rapaz; acaso já viste um açougueiro sorrindo?”

O primeiro, até onde eu sei, foi o Henrique. Um menino lindo, inspetor. Era um desses moleques que vivem em redor do porto, sempre buscando serviço em troca de tostões. Clemenciano ofertou-lhe trabalho no açougue quando o viu, certa manhã, ajudando a descarregar caixas e sacos de um vapor recém-atracado. Contou-me que ficara impressionado com a força do Henrique, que, apesar de não ter mais do que treze anos, ombreava com os estivadores na presteza com que desempenhava a tarefa. Convenceu-o com facilidade: serviço mais leve, gorjeta maior, um canto para dormir nos fundos do açougue. Ele dizia preferir os mais novos porque reclamavam menos das ordens e do pagamento, e eu nunca desconfiei de que não era apenas isso. Conhecia, desde antes do casamento, a reputação de solitário e excêntrico que tinha o Clemenciano; porém, nada disso me preocupou – afinal, excentricidades temos todos nós. É tudo uma questão de quem sabe melhor disfarçar. No caso de Clemenciano, então, a transparência parecia-me uma virtude. Voltando ao Henrique: não durou três meses. Eu conversava pouco com ele, até porque nunca gostei de descer ao açougue e transitar por ali, um lugar bruto, o senhor entende, não é? Um ambiente nada adequado para uma mulher de sociedade, nem para fazer compras; só escravas a mando e homens, brancos ou negros, iam lá deixar suas patacas em troca de pedaços de animais. Mas o garoto me parecia assustadiço, e eu não compreendia bem por quê. Começou cuidando do balcão, da limpeza, da organização da despensa, mas logo Clemenciano fez questão de ensinar-lhe todas as lides do açougue, inclusive matar. Em uma cinzenta manhã de julho, despertei com gritos horrendos que vinham do pátio do açougue, que fica logo abaixo da janela do quarto. Debrucei-me sobre o peitoril e vi o porco amarrado, deitado sobre um cavalete improvisado com ripas, e o bicho corcoveava, torcia-se todo enquanto o sangue gorgolejava através de uma ferida no pescoço; Henrique tinha a faca nas mãos, e o Clemenciano bradava: “Não, tu erraste a veia, é aqui, olha, aqui, passa a lâmina de novo.” Foram mais três golpes até que o menino acertasse, e, a cada facada, eu me agitava, padecia de tremores e uns calores de embriaguez; foram três golpes, mas, depois do segundo, o porco já não tinha forças para protestar: convulsionava de leve e soltava um ronco doído, bem lá de dentro. O Henrique estufou o peito, orgulhoso. Aquela cena ficou, por dias, embaralhando-se em meus pensamentos, e, quando acontecia de eu passar por Henrique, detinha-me a observar seus gestos, a expressão do rosto, e era inevitável a constatação: aquele já não era mais o rapazinho das docas, algo fora roubado dele. Uma semana depois, desapareceu, inspetor, sem deixar rastro. O Clemenciano parecia irritado, mas já se resignava: “Pegou a féria e sumiu; mas é mesmo um inferno conseguir bons empregados hoje em dia.”

26 de outubro de 18** - Açougue fechado. Fomos à missa, Diva, Tomás e eu. Aproveitei a tarde para ensinar ao menino o funcionamento da câmara de defumação. Expliquei-lhe que os produtos cárneos, durante a defumagem, adquirem coloração dourada, textura e suculência agradáveis, e o sabor final pode ainda ser incrementado com especiarias (canela, noz moscada, cravo-da-índia) e ervas (estragão, salsa, anis, manjericão). Usando o pernil que limpamos ontem, demonstrei as etapas de cura na salmoura, lavagem e, finalmente, defumação. Ele mesmo dependurou a carne no gancho, dentro da estufa de defumagem; acendemos juntos o braseiro, que, conforme salientei, precisa ser constantemente alimentado com algum tipo de madeira dura (mogno, bétula, carvalho, nogueira), e sempre em quantidades maiores, para fazer subir, aos poucos, a temperatura. Tomás gostou do mecanismo de roldanas e alavancas que montei para baixar e levantar a tampa da chaminé, que só deve ser fechada na etapa intermediária do processo de defumação (no início, a secagem, e no fim, o cozimento, a chaminé deve estar aberta). Meu jovem ajudante é esforçado, e eu, inegavelmente, o aprecio cada vez mais. Ao entardecer, contrariando os próprios hábitos, Diva surpreendeu-nos ao descer até o açougue. Recomendou a Tomás que fosse banhar-se; afinal, estava coberto de fuligem e logo seria servido o jantar. Ele obedeceu de pronto. A mim, ela não disse nada, apenas me olhou com aquele jeito de quem guarda mistérios, de quem acusa sem palavras.

Eu me assustei quando, no meio da noite, tia Diva surgiu à porta do meu quarto, em robe de chambre, segurando um candelabro cuja luz aflita mais fazia brotarem sombras do que claridade. Ao perceber-me desperto, ergueu o indicador e colou-o aos lábios, demandando silêncio. Fechou a porta e, leve, muito leve, quase deslizando sobre as tábuas do assoalho, veio até a cama. Sentou-se ao meu lado, trazendo o seu perfume de flor, e falou, quase sem mover a boca: “Precisava ter contigo, meu sobrinho, mas tinha de esperar Clemenciano dormir.” Demorou para dizer o que tanto queria, perdeu-se em digressões e, quanto mais se prolongava aquele preâmbulo, mais angústia ela demonstrava: o olhar voltando-se, o tempo todo, para a porta; os dedos entrecruzando-se sem lógica; o seio arfante e descompassado. Enfim, a pergunta: “Diz-me a verdade, Tomás, toda a verdade – Clemenciano, alguma vez, te fez mal?” Respondi que não, estávamos até nos entendendo bem melhor do que no começo, e ela cortou: “Pois é isso o que temo, meu querido, que se aproveite da intimidade para envolver-te em coisas feias.” Tentei acalmá-la, asseverando que nada ocorrera fora da rotina, mas tia Diva começou a chorar: “Ai, Tomás, tu és o filho que nunca tive e nem poderei ter; jamais me perdoaria se te maltratassem sob o teto de minha própria casa.” Eu não sabia o que fazer, se apenas calava, se devia abraçá-la, se a levava de volta aos seus aposentos; eu sequer sabia o que pensar de tudo o que ouvira. Entre soluços, já se erguendo, ela confidenciou: “Clemenciano teve, antes de ti, outros garotos que o ajudavam no açougue, e eu desconfio de que fez muito mal a eles; conheço o marido que tenho, Tomás, e há um verdadeiro carrasco dentro dele.” Retomou o candelabro, que havia depositado na mesa-de-cabeceira, e, girando sobre os calcanhares, saiu do quarto. Pelo vão que deixou na porta entreaberta, vi que ela deu apenas uns poucos passos antes de assoprar as velas e seguir pelo corredor agora afogado em trevas. O caos em minha mente prenunciava pesadelos. Esta foi a primeira noite em que, naquela casa, tranquei a porta antes de dormir.

O segundo se chamava Cristóvão. Não recordo bem o que me disse Clemenciano a respeito de sua origem; decerto era mais um desses que até possuem família, mas preferem viver com outros meninos, em bandos, pelas ruas, e que nunca – ou quase nunca – são procurados pelas mães viciosas e sem moral. Sei que, umas três semanas depois do sumiço do Henrique, o Cristóvão já estava lá, varrendo a calçada em frente ao açougue. Mais uma criança; doze anos, no máximo. Ao contrário do Henrique, era franzino e ossudo, mas tinha uns olhos cor de violeta e uns cachos pretos e lustrosos que fascinavam. Também tinha mais facilidade para sorrir. Ao cabo de semanas, as coisas pareciam andar bem, mas o inspetor deve ter malícia suficiente para saber que, quando nos vem tão nítida impressão de remanso, o pior dos vagalhões não tarda em erguer-se. Eu achava estranho que, a cada dia, Clemenciano subisse do açougue em hora mais avançada; mesmo com as portas do estabelecimento já cerradas, ele permanecia lá, “tratando dos seus assuntos”, conforme justificou em uma noite na qual o esperei, com a mesa posta, até que a sopa esfriasse por completo. Mentia, e eu estava convencida disso. Decidi ver com meus próprios olhos, e isso não seria uma maneira de me certificar de coisa alguma, pois, a essa altura, certezas eu já as tinha em abundância; era apenas o próximo e previsível passo naquela farsa e, quiçá, um jeito de punir a mim mesma por tanto tempo de cegueira quanto à perversidade daquele que, por desgraça, dormia ao meu lado noite após noite. Era uma sexta-feira, e Clemenciano, mais uma vez, demorava-se. Desci e fiquei andando pela calçada, na expectativa de escutar algum ruído que viesse de dentro do açougue. Cosendo meu ouvido à porta, percebi, sim, barulho de gente, sem conseguir distinguir mais. Resolvi agir; no entanto, sequer foi preciso utilizar a cópia da chave e entrar pela porta lateral, conforme eu planejara: havia, em uma das janelas, um vidro rachado, e, enfiando por ali a minha mão, afastei a cortina e vi. Prensado contra a mesa de corte, na qual jaziam montículos de carne moída e tripas secas para feitura dos embutidos, o corpo de menino do Cristóvão quase desaparecia no abraço rude daquele homem, os pelos grisalhos esmagando-se naquela pele tão clara, tão lisa; e Clemenciano sugava o seu pescoço, os lábios, os lóbulos das orelhas, com aquela boca murcha, asquerosa, indecente. O monstro agarrou, então, o pobrezinho pelos ombros, girou-o com violência e atirou-o de bruços novamente sobre a mesa. Larguei a cortina e, por reflexo, recuei uns dois ou três passos trôpegos. Clemenciano foi pisar em casa apenas meia hora depois; eu já estava recolhida e não o acompanhei na ceia. Foi uma mistura de temor e humilhação o que eu senti enquanto o esperei, na penumbra, voltar ao quarto para dormir, enquanto, quieta, observei-o lavar o rosto e vestir o pijama; porém, o mais legítimo horror foi o que me possuiu quando ele se deitou, bem perto, e começou a me tocar. Gritei, repeli-o aos chutes, e ele – esse demônio – revidou com três murros que quase me arrebentaram a mandíbula. Ele não fazia algo assim desde aquele dia, há dez anos, quando lhe revelei que eu jamais poderia parir os seus herdeiros, que eu tinha o útero seco. Mas foi desse jeito, inspetor: naquela noite, bastaram os socos para saciar a sua volúpia; deixou-me sozinha, chorando agarrada aos travesseiros, e foi beber conhaque na sala. Não se passaram nem cinco dias até que Cristóvão também sumisse.

5 de novembro de 18** - Vendas: quatro bistecas de porco, seis libras de carne bovina moída, oito libras de linguiça, dois frangos inteiros, um balde cheio de miúdos de boi. Compras: quinze achas de lenha, um rolo de fumo, duas garrafas de canha. Tomás, hoje, estava calado. Sinto que, de uma semana para cá, está mais arredio. Não consigo lembrar-me de nada que possa ter comprometido a confiança dele em mim; no entanto, o menino tem andado com passos mais cautelosos, fala mais contida e olhos mais abertos. E Diva é sempre um problema. Hoje, brigamos logo cedo, quando, à mesa do desjejum, comentei algo sobre a rápida adaptação de Tomás ao serviço pesado do açougue. Essa observação casual foi o estopim de um acesso de fúria: Diva pôs-se em pé em um salto, derrubando louça ao chão e gritando que já bastava, que eu acabasse logo com o teatro, que eu sabia o que acontecera com meus dois ajudantes, que eu confessasse de uma vez. Tentei não responder, mas ela estava incontrolável, chegou ao disparate de lançar, em minha direção, o bule de café. Diva está passando de todos os limites.

Apesar da minha insistência e dos meus questionamentos, tia Diva fez-me apenas negaças, como se houvesse se arrependido das coisas que falara naquela noite e que, desde então, me provocavam incessantes pesadelos. Foi em uma dessas lassas tardes de sábado que ficamos, enfim, a sós em casa, pois o Sr. Clemenciano ausentara-se para ir ao mercado público. A tia estava recostada no canapé, distraída na leitura de um desses romancetes da moda. Cheguei-me a ela e, sem hesitar, exigi que me revelasse os pormenores de suas suspeitas quanto ao marido. Mais uma vez, tentou dissuadir-me da vontade de saber; porém, eu estava, a cada dia, mais inquieto e torturado por incertezas, as quais pesavam sobre minha cabeça a todo tempo: na hora do sono, em meio às lições de álgebra ou latim e, principalmente, quando estava lá no açougue a cortar carnes, limpar utensílios ou cuidar da defumagem. Tia Diva resistiu a todo custo, mas, quando implorei que falasse, em nome do amor de mãe que nutria por mim, não pôde seguir calada. Repetiu o que já dissera, que via, no Sr. Clemenciano, um homem de coração empedernido e mente imoral, capaz de cometer barbáries, e, a seguir, acrescentou o tão terrível pouco que, por todos aqueles dias, tanto me trouxera medo, mesmo sem sabê-lo: “Tenho razões para crer – por Deus do céu! – que ele maculou os meninos que trabalhavam com ele e, depois de uns tempos, talvez para que não contassem a ninguém, matou-os, como se fossem porcos. Esta é a verdade, meu sobrinho: Clemenciano, de tanto matar, já não diferencia quem ou o quê.” Não tive tempo de dizer nada; ouvindo o ritmo de um andar conhecido, percutido nos ladrilhos da rua, tia Diva esticou o pescoço em direção à janela e olhou para fora: “É ele; está de volta.” Foi então que ela tomou as minhas mãos entre as suas, que tremiam sem controle, e compartilhou, em um fio de voz, o que era, por certo, a maior das angústias: “O que vamos fazer, Tomás?” O ranger súbito dos gonzos da porta e os passos trovejando escada acima deixaram a pergunta assim, solta, sem resposta, a assombrar.

Eram muitas coincidências, inspetor, mas eu não queria acreditar. A certeza me veio desse jeito, aos poucos, e eu já não suportava mais viver ao lado daquele remanescente de Sodoma, daquele matador. Pensei que atacar meu próprio sobrinho seria ousadia demais; no fundo, eu quis acreditar em um resquício de humanidade escondido no calabouço sujo que ele, talvez, em suas preces, chamasse de alma. Mas ele não tinha alma. E Deus sabia disso. E Deus não escutava suas orações. E foi Deus quem me alertou quanto ao perigo, fazendo-me olhar para Clemenciano nos exatos momentos que, quase sem disfarce, ele se punha a admirar a beleza impúbere do meu sobrinho, fazendo-me perceber, nos hiatos do que falava, a maldade e a lascívia, fazendo-me notar a crescente selvageria dos seus modos à mesa e de sua crueldade no abate dos animais, sinal de que outros instintos espicaçavam-lhe os nervos. Eu precisava proteger o Tomás, ou ele seria o próximo, o senhor entende, não? O inspetor viu como acabaram os outros dois, o senhor estava lá quando encontraram: só os ossos enterrados no fundo do pátio para contar a história...

Naquele dia, o Sr. Clemenciano esteve ausente de casa desde o começo da tarde até o anoitecer. Quando voltou, foi direto para o escritório, no andar de cima; não passou no açougue, e, se eu não o tivesse, por acaso, avistado pela janela, nem saberia que tinha chegado, porque subiu para casa bem assim, silencioso e cabisbaixo. Depois de algum tempo, fui ter com ele a respeito do serviço que me ordenara e do qual eu cuidava desde muito cedo, apesar da noite maldormida e povoada de sonhos aterradores. Encontrei-o à escrivaninha, de pena e caderno em punho. Pedi licença e perguntei se poderia me ajudar com o defumador, mas ele sequer permitiu que eu terminasse a frase, ordenando que não o interrompesse. Por volta de meia hora depois, sem conseguir resolver sozinho o problema com a intensidade do fogo, que me parecia alto demais, ousei procurá-lo outra vez e obtive uma resposta ainda mais grosseira. Descia de volta ao açougue quando dei com tia Diva no vestíbulo; olhando de soslaio escada acima, cochichei: “Ele já chegou e está intratável.” A tia largou o cesto de compras junto à porta e, com cenho grave, galgou os degraus. Retornei aos afazeres, tentando contornar o problema do excesso de chamas na câmara de defumagem, o que me absorveu bastante nos minutos seguintes, quase ao ponto de eu não notar o estardalhaço que, de repente, sobreveio lá da casa: era como se porcelanas se estilhaçassem e móveis tombassem, tudo acompanhado por gritos lancinantes. Atravessei o açougue correndo, cheguei à calçada e, tão logo pousei a mão sobre a maçaneta da porta do vestíbulo, esta se abriu, dando passagem à minha tia, a tez branca feito cera, os cabelos desgrenhados, os lábios exangues escancarando-se em pedidos de socorro. Atrás dela, com olhos desvairados e passos cambaleantes, vinha o Sr. Clemenciano, rugindo impropérios e obscenidades que não caberiam nem mesmo na boca do mais cínico dos sátiros. Ela correu e enfiou-se no açougue, clamando por ajuda; o Sr. Clemenciano, em sua carreira cega de ódio, esbarrou em mim com truculência, fazendo-me cair no meio da rua. Foi somente o tempo de erguer-me e entrar no açougue para que eu já encontrasse tia Diva acuada em um canto e o Sr. Clemenciano lançando-se sobre ela, aos berros de “tu és louca” e “vou te matar”. Eu não pensei nada, não posso afirmar nem mesmo que agi por reflexo, mas, quando vi, eu já havia apanhado o cutelo de cima do balcão e desferido um golpe de prancha, forte como eu nem imaginava poder, direto na nuca do Sr. Clemenciano. Pude ver o alívio nos olhos de tia Diva quando ele desmoronou de uma só vez, que nem árvore a ser lenhada. Ela começou a chorar, e dizia: “Ai de nós, Tomás; ele já sabe de tudo, não me contive e acusei-o dos assassinatos; se ele acorda, mata-nos!” Inexistia qualquer escolha, era uma questão de sobrevivência e de justiça. Agarrei-o pelos tornozelos, rezando para que não voltasse a si, e comecei a puxá-lo para o pátio, em direção ao defumador. Era um monstro, eu pensava, um monstro, e eu estava fazendo a coisa certa. Pedi a tia Diva que me ajudasse, por causa do grande peso, mas ela não queria, apenas chorava; foi quando ele começou a se mover, e ela própria, ao percebê-lo, acorreu e, ofegando em seu tremendo esforço, levou-o até a porta da câmara de defumagem. Ele ainda não tinha descerrado as pálpebras quando o colocamos lá dentro, mas, tão logo trancamos a porta por fora, ele começou a tossir; em seguida, vieram os gritos, alternando-se entre sentenças de ódio, juras de vingança e pedidos de clemência. Tia Diva, com as mãos em concha, cobria os ouvidos e repetia sem parar: “Eu não posso ouvir isso; por Deus, que acabe logo; eu não posso ouvir isso...” Espessos rolos de fumo fugiam pela chaminé, junto com os mugidos roucos do Sr. Clemenciano; decidi, então, abreviar o sofrimento e poupar a mim e tia Diva de escutar seus estertores: de uma só vez, puxei a alavanca e fiz descer a tampa sobre a abertura da chaminé, selando-a. Porém, era tarde para impedir que um odor acre, nauseabundo de chamusco, de gorduras fritas, de carnes sapecadas, se espalhasse pelo ar.

O senhor entende, inspetor? Não havia outra saída. Clemenciano enlouqueceu quando ameacei entregá-lo à polícia. Apesar de tudo, eu asseguro que não me trouxe deleite algum assistir ao seu fim. Quanto às ossadas em nosso pátio, eu jamais poderia ter notado algo estranho, porque Clemenciano tinha esse costume de enterrar os despojos dos animais ali mesmo. Como eu poderia imaginar que, entre as carcaças, ele houvesse sepultado o pouco que restara daqueles meninos inocentes? Como? Talvez eu seja ingênua demais, porque, quando pequena, conheci um tio meu que era da polícia, trabalhou em muitos cantos da província, e ele sempre alertava: basta que um matadouro se instale no lugar para que os crimes ali aumentem, em especial os crimes de morte. Não sei, inspetor, mas deve ser verídico; não é apenas essa repetição monótona do ato de matar que, quase sem querer, pode se voltar do homem para o homem, é também algo sensorial, é a vermelhidão banal do sangue que vicia os olhos de quem vê, é o cheiro da carnificina que se dispersa com o vento e vai atordoar a cabeça das pessoas e atiçar o diabo que tem lá dentro.

15 de novembro de 18** - Açougue fechado. O pior dos dias. Deixei Tomás cuidando do defumador desde cedo e, à tarde, fui ao porto despachar peças de carne para o interior. Fiz algumas compras, encontrei amigos e fomos beber em um armazém da Rua do Comércio. O sol já esmorecia quando tomei o rumo de casa. Vinha subindo o Beco do Poço quando, à distância, reconheci a silhueta de Diva cruzar pela Rua do Carmo. Ia célere, como quem não pode desperdiçar sequer um segundo porque vai de encontro ao inadiável. Segui-a até o Largo do Horto, onde estavam uns meninos que brincavam de funda, disputando para ver quem primeiro acertava os pardais que voltavam ao refúgio noturno nos galhos das árvores. A uns dez passos do grupo, Diva largou a cesta que carregava e quedou-se e observar. Um dos garotos enfim logrou atingir um pássaro e foi correndo catá-lo do chão. Para minha surpresa, pegou-o, quebrou-lhe e arrancou-lhe as pernas, desarticulou-lhe uma asa, soltou-o, rindo como se tivesse prazer em vê-lo esvoaçar miseravelmente, com uma asa só, arrastando a outra, pousando os cotos sangrentos na terra pedregosa da praça. E Diva impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Quando o menino cansou de brincar com os farrapos de vida daquele outro ser, chutou-o para um canteiro e, separando-se dos outros garotos, começou a andar para os lados do Hospital de Caridade. Ela, então, chamou-o e apontou a cesta ao seu lado; ele se chegou com rapidez, apanhou a carga e pôs-se a acompanhar Diva, que, estranhamente, se embrenhou no Beco do Quinto, lugar nada próprio para qualquer mulher honesta, ainda mais àquela hora, ao poente, em que as vias mais estreitas já soçobravam na escuridão. Quando ela o puxou para o sombrio vão formado entre um muro e a parede de uma casa, não tive coragem de mais me aproximar. Sequer foi preciso, porque eu já havia visto o bastante para entender e também porque, mesmo de onde eu estava, pude escutar haustos e gemidos, e a voz da Diva sussurrando que viesse todo, que a chamasse de mãezinha, que tocasse na sua mãezinha. Saí do beco sem sentir meus próprios pés, em tal estado de estupefação e nojo, que consegui andar apenas uns poucos metros antes de desabar atrás de uma sebe, onde me assentei para tomar fôlego. Não foram nem cinco minutos até que o vulto de Diva, sozinha, carregando outra vez a cesta, deixasse o Beco do Quinto. Era grande sim a vontade de ir tomar-lhe satisfações, de chamá-la das coisas mais vis, até mesmo de surrá-la; porém, maior ainda era o estado de confusão mental em que fiquei e que me fez vagar a esmo pelos arredores. Quando dei por mim, passava de novo pelo Beco do Quinto; agora, porém, havia ali uma grande movimentação: homens da polícia recolhiam um corpo, cercados por curiosos, e eu, acorrendo ao local, espremendo-me entre a gentalha, vi a carranca horrenda do morto, os olhos arregalados, a boca aberta em mutismo de asfixia. Contudo, o pânico proporcionado por essa visão foi apenas um débil reflexo do que senti ao reconhecer, a despeito da expressão transfigurada, o rosto do menino que Diva atraíra até o beco e ao encontrar ali, amarrado feito torniquete em seu pescoço, um lenço de bordado familiar. Quando cheguei em casa, ela ainda não estava. Aliás, ainda não retornou. Tremo ao imaginar por onde anda. Tomás já subiu duas vezes para falar comigo, disse que está no segundo cozimento do dia e pediu-me ajuda com a regulagem do braseiro. Creio que fui ríspido, mas ele não pode imaginar o que se passa. Afeiçoo-me a ele como a um filho, o filho que nunca tive e, hoje agradeço à providência, jamais terei com Diva.

Ontem, tia Diva chegou da chefia de polícia dizendo que tudo vai ficar bem. Perguntei a ela quando vamos deixar esta hospedaria e ir para casa; ela respondeu que logo sairemos daqui, mas não para o sobrado na Rua do Carmo, lá ela nunca mais quer pôr os pés. Falou algo sobre mudar de cidade. Depois, ficou horas calada em frente à lareira, jogando às flamas uns documentos, livros, cadernos. “Papéis dele”, explicou, sem falar o nome. “Que morra tudo com ele.” Antes de dormir, já acomodados na cama estreita que, nesta morada improvisada, somos obrigados a compartilhar, ela me abraçou, me fez afagos, e eu senti um conforto cálido como nunca antes. Fiquei ali, entorpecido pelo perfume almiscarado do seu colo e pela maciez da sua voz a me sussurrar: “Tu serás feliz aqui com tua mãezinha; tu gostas da tua mãezinha, não?” Nessa noite, tive sonhos bons.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Os mais invisíveis do mundo



Leonardo Ortegal



Eles estão entre nós. Não são os ET´s, e estão invisíveis. Não são pretos, nem putas, mas nos servem como escravos há séculos, e tem seus corpos atravessados, como objetos, para a satisfação de nosso desejo hedonista.

Eles são tratados do jeito que se trata as minorias: suas necessidades são subjugadas, suas dores, menosprezadas, e sua fragilidade se transforma em degraus para que passem em ascensão aqueles que detém o poder. Mas acontece que, como várias minorias, eles não são minoria. Na verdade eles já chegam a ser maioria, como uma manifestação epidêmica da nossa própria doença.

O Brasil é um país enorme, mas mesmo assim são muitos os homens que não possuem um teto para morar, ou um pedaço de chão para cultivar. Esse paradoxo se mistura a um outro, pois esse mesmo país que abriga 190 milhões de cabeças humanas, e deixa milhões sem ter onde dormir ou cair morto é o mesmo país que oferece terra, água, abrigo, alimento e assistência médica a mais 200 milhões de cabeças que não são humanas, mas são animais.

Animais não humanos, que vivem nas terras do mundo, e vem e vão como estalos errantes. Hoje se entra em setembro, e não passará o mês sem que morram aos milhares sem fim as galinhas ‘adultas’ que, ontem ainda, saíram do ovo. Tiveram suas vidas acachapadas, seus anos reduzidos a pobres semanas de clausura. Cruzaram o Brasil sobre rodas de enormes carretas, no vento, no sol, no frio e na chuva, e ninguém viu. Seus corpos banhados com óleo e queimados na chapa, servidos nos pratos, tragados aos tratos digestórios dos homens, e ninguém as notou. Setembro será mais um mês. Um rio Araguaia de sangue de aves correu no país, e que venha outubro em seus ventos de morte.
Na Europa os homens têm bom coração. Se compadecem das barrigas em fome, e chegam a pagar ao Brasil para que faça mais soja - nem que para isso precise tornar em cinzas os verdes frondosos da nossa Amazônia. Barrigas tem fome e precisam comer. São vacas e bois aos milhares, que, desafortunados, não contam com o pasto abundante do nosso país. Mas contam com a soja abundante, com o cheiro da fumaça do cerrado que agora é deserto, e vai de navio até suas bocas. Comida importada. Até que não são tão invisíveis assim.

O mundo tem cheiro de diesel. Diesel e peido. O peido assassino que lhe queima os cabelos das narinas até pode ter vindo do seu colega de trabalho. Mas o peido potente, o metano que queima a camada de ozônio e transforma o planeta em estufa, é obra dos cus invisíveis. A usina de flato animal tem filiais espalhadas nos quatro cantos da terra, e consegue poluir os ares mais do que todos veículos a motor desse mundo, é o que dizem as Nações Unidas. Produção diuturna de gases invisíveis, só não tão invisíveis quanto os seus próprios emissores.

Decapitação, eletrocussão, esquartejamento, degolação. Vivemos o enredo de um filme de terror onde o sangue não é de tomate. Um festival doentio de mortes, cuja variedade e criatividade sádica põe catatônicos os mais bizarros roteiristas de todos os tempos. Caldeiras de água fervente para o mergulho dos vivos, serras para extirpar bicos, para extirpar testículos, máquinas de empurrar maisena e gordura de porco direto nos fígados, e um imenso triturador, para transformar os nascidos defeituosos, ainda vivos, em ração para os demais. São estes alguns dos itens da trama de Os mais invisíveis do mundo, o thriller que nunca saiu de cartaz, e que ninguém se propõe a assistir.



(publicado também no jornal O MIRACULOSO)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Sabe de uma coisa?

Sabe de uma coisa? Essa foto tem conteúdo impróprio. Alguns argumentariam: “é um absurdo!”; e mudariam para um sítio de pornografia pacífica e cristã. Outros, estupefatos, talvez empreendessem uma corrida frenética para a cozinha, em busca dos nuggets remanescentes, para realizar o bom e velho “croc-croc”. Certamente, esta imagem pode espremer os calos do pé esquerdo de um cidadão maravilhosamente ordinário. E, comumente, provocaria a ira de bastiões da “magnânima” evolução da espécie humana. Pintariam-me abjeto nos comentários: “Maldito vegan hipócrita!”; “Com certeza não tem mãe!”; “Tu és um exemplo de capitão fascista!”. E como vingança pessoal, engoliriam um bife a seco, sem mastigar e – logo após – exalariam gazes triunfantes de alegria, delirando em poema decorado: “Eu não ligo! Eu não ligo!”.

E, depois, embevecidos de um aroma particular, voltariam para uma existência própria e financeiramente objetiva: o sono não remunerado. Como o sexo é vendido nas esquinas, o sono é a única capacidade inexoravelmente não-comercial do ser humano; não se pode vender, nem comprar. Ou se tem ou não tem; está com ele ou não está. É nele que vive o sonho, patético, algoz da realidade insuportável. Nesta atmosfera idílica, surge um desejo, impossível a todos os seres. O bastião da moralidade churrasqueira sugere para si, em sonho, um inexorável bife. Uma peça que simboliza quase um monumento em homenagem à baba que escorre no canto esquerdo da boca humana. E nesse filé, magnânimo em sua forma, não existe o azulejo branco como sangue, as tripas correndo para fora, o grito de dor. É uma peça inocente, mais doce que Marília de Dirceu e Inocência besuntadas em melado de cana. Irônica como uma mentira deve ser. Por mais determinado que seja o sujeito, ninguém sonha – nem mesmo o mais convicto dos defensores da supremacia humana – com um suposto abate orgástico e emocionante de um animal que agoniza. O sofrimento algumas vezes é o contra-senso do prazer, e o prazer é egoísta...

domingo, 25 de setembro de 2011

“O Planeta dos Macacos”: confluências entre humanidade, racionalidade e opressão

Rafael Bán Jacobsen

Em 1963, o engenheiro e escritor francês Pierre Boulle (Avignon, 20 de fevereiro, 1912 – Paris, 30 de janeiro, 1994) publicou o romance “La Planète des Singes” (“O Planeta dos Macacos”), obra de ficção científica que acabaria sendo mais conhecida do grande público através da sua adaptação cinematográfica de 1968, dirigida por Franklin J. Schaffner e estrelada por Charlton Heston. O livro de Boulle é um exemplo de crítica social por meio da distopia, isto é, trata-se de uma ficção cujo valor representa a antítese da filosofia utópica, descortinando alegoricamente mazelas humanas e sociais tais como a corrupção, o preconceito, a sede por poder, o totalitarismo e o autoritarismo.

Entre tantas possibilidades de leitura para o texto de Boulle, uma das mais ricas e menos debatidas é a crítica à dominação dos humanos sobre os animais não-humanos, especialmente no que diz respeito à polêmica questão da experimentação animal.

Resumidamente, o livro tem a forma de um diário de bordo escrito por um astronauta terráqueo chamado Ulysse Mérou, que, acreditando ser o último ser humano restante no universo, escreveu a sua história na esperança de que alguém a ache. Ele narra sua viagem até os arredores da estrela Betelgeuse, onde ele e seus companheiros de bordo descobrem haver um planeta muito similar à Terra, ao qual dão o nome Soror (“irmã”, em latim). Aterrissando no planeta, descobrem ser possível respirar-lhe o ar, beber-lhe a água e comer da vegetação local. Logo encontram outros seres humanoides no planeta, muito embora estes ajam primitivamente como chimpanzés e mostrem terrível aversão a instrumentos e objetos manufaturados em geral, razão pela qual atacam os astronautas recém-chegados, destruindo-lhes as roupas. De fato, é grande a surpresa dos terráqueos diante da “bestialidade” daqueles seres de aparência tão familiar:

Em algum momento durante a viagem, havíamos discutido nosso eventual encontro com seres vivos, e tínhamos vislumbrado com os olhos da mente criaturas monstruosas, disformes, com aspecto físico muito diferente do nosso, mas sempre imaginávamos, de modo implícito, a presença de uma mente. No planeta Soror, a realidade parecia ser bem o oposto: tínhamos de lidar com habitantes que se assemelhavam a nós em todos os aspectos físicos mas que pareciam completamente desprovidos do poder da razão. Esse era, deveras, o significado da expressão que eu havia achado tão perturbadora em Nova e que agora eu via nos demais: uma falta de reflexão consciente, a ausência de inteligência. (BOULLE: 1966, p. 31)

Uma interrogação que poderia inquietar Ulysse e seus companheiros de viagem frente a tal realidade é se esses seres, tão aparentemente humanos mas tão essencialmente esvaziados de tudo que, no senso comum, caracteriza o “ser humano” (linguagem, raciocínio, consciência), devem “contar como humanos”, ou seja, se esses seres devem, em tese, possuir o mesmo status moral dos homens civilizados que habitam a Terra. Dilema similar é colocado pelo biólogo Richard Dawkins, em seu recente livro Deus, um delírio, no trecho em que propõe uma interessante situação hipotética para analisar a “sacralização da vida humana” que é, muitas vezes, tomada como argumento por ativistas antiaborto:

(...) imagine que uma espécie intermediária, o Australopithecus afarensis, por exemplo, tivesse conseguido sobreviver e fosse descoberta numa área remota da África. Essas criaturas “contariam como humanas” ou não? (...) O absolutista (a favor da superioridade da vida humana) precisa responder à pergunta, para aplicar o princípio moral de garantir aos seres humanos um status único e especial, porque eles são humanos. No extremo, eles teriam que criar tribunais, como aqueles da África do Sul no apartheid, para decidir se um indivíduo específico deveria “passar como humano”.

Mesmo que se tente dar uma resposta clara para o Australopithecus, a continuidade gradativa que é característica inescapável da evolução biológica diz-nos que tem de haver algum intermediário que fique suficientemente perto do “limite” a ponto de obscurecer o princípio moral e destruir seu absolutismo. Um jeito melhor de dizer isso é afirmando que não há limites naturais na evolução. A ilusão de um limite é criada pelo fato de que, por acaso, os intermediários evolutivos estão extintos. (...) O fato da evolução derruba de forma devastadora a discriminação moral absolutista. (DAWKINS: 2007, p. 386-387)

Entre tantas descobertas, os astronautas terráqueos não têm muito tempo para indagações e estabelecem-se com os humanos primitivos por alguns dias, na esperança de que possam civilizá-los, e Ulysse apaixona-se por uma deles, a qual passa a chamar de Nova. Porém, certo dia, uma inesperada situação se impõe, um acontecimento que ilustra de maneira ainda mais dramática o latente dilema das nebulosas fronteiras do humano: surge um grupo de caçadores na floresta, consistindo de gorilas, orangotangos e chimpanzés que se vestem como os humanos da Terra e usam armas e máquinas. Os caçadores alvejam vários dos humanos por pura diversão e capturam outros, inclusive o protagonista, o qual, analisando o comportamento dos símios, observa:

Eu havia acompanhado a mudança na sua expressão desde o momento em que foi alertado pelo ruído e registrei vários aspectos surpreendentes: antes de mais nada, a crueldade do caçador perseguindo sua presa e o prazer febril que obtinha desse passatempo; mas, sobretudo, o caráter humano de sua expressão – nos olhos desse animal, havia uma fagulha de entendimento que eu havia em vão buscado nos homens de Soror. (BOULLE: 1966, p. 42)

É digno de nota que, no texto, o “caráter humano” de um habitante de Soror apareça inserido em uma cena de violência, justaposto à perversidade, sinalizando que, talvez, a verdadeira essência do humano não seja pureza, nobreza ou qualquer qualidade elevada do espírito.

Enquanto a maioria dos humanos apreendidos pelos caçadores é vendida para trabalhos manuais, o protagonista e Nova acabam em uma instituição de pesquisadores que fazem experimentos sobre a inteligência humana. É apenas nesse momento que os questionamentos de natureza biológica e moral começam a perpassar a mente de Ulysse:

Homens! De que raça eram então os seres que os macacos haviam matado e capturado? Algum tipo de tribo atrasada? Se era esse o caso, quão cruéis eram os soberanos desse planeta ao tolerar e talvez decretar tais massacres! (BOULLE: 1966, p. 53)

No centro de pesquisas, as habilidades e a capacidade cognitiva de Ulysse chamam a atenção da Dra. Zira, uma chimpanzé que ali trabalha como pesquisadora. Pouco a pouco, Ulysse revela a Zira todo o seu conhecimento e a verdade sobre sua origem. A partir de então, em segredo, Zira passa a ensiná-lo a língua símia e diversas coisas acerca do planeta dos macacos, sua história, sua política, sua ciência.

Em seus diálogos com Ulysse, Zira revela muito de como os macacos enxergam a si próprios, e essa autoimagem, idealizada e divinizada, é perfeitamente análoga à nossa concepção religiosa do “homem concebido à imagem e semelhança de Deus”:

‘O que você acha?’, ela disse. ‘O macaco é, obviamente, a única criatura racional, a única que possui uma mente e também um corpo. Mesmo os mais materialistas dentre os nossos cientistas reconhecem a essência sobrenatural da mente símia. (BOULLE: 1966, p. 83)

Em dado momento, Ulysse conhece o noivo de Zira, chamado Cornélius, um cientista jovem porém muito conceituado. Embora os chimpanzés Zira e Cornélius estejam convencidos de que Ulysse é um ser racional, os orangotangos, que regem a sociedade, acreditam que ele finja entendimento da língua, porque a sua filosofia não permite pensar em humanos inteligentes. Com a ajuda de Cornélius, Ulysse consegue a oportunidade de fazer um discurso em uma conferência anual de biologia, diante de diversos cientistas, jornalistas e autoridades do mundo símio. Essa passagem do romance é especular e, portanto, complementar ao conto “Informação para uma Academia”, do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), que narra a história de Pedro Rubro, um macaco educado que comparece perante os membros de uma academia para contar a história de sua vida, de sua ascensão de fera a algo próximo do homem. Com a figura de um macaco falante, de gravata-borboleta, smoking e com o bloco de notas da palestra em punho, Kafka derruba a autoproclamada fronteira que o homem estabelece entre si e as demais espécies de animais. Ao final de sua narrativa, o macaco Pedro Rubro, já perfeitamente humanizado e educado, reflete sobre a sua transformação e sobre o que ganhou com ela. Sua constatação é pouco alentadora para a espécie homo sapiens. Ao conquistar tudo que julgamos relevante (conforto, reconhecimento, vida social agitada, um relacionamento conjugal), Pedro parece encarar tudo com um grande vazio – a vida humana em nada é mais valiosa do que a sua prévia vida simiesca:

Se com uma vista de olhos examino toda minha evolução e o que foi seu objetivo até agora, nem me lamento dela, nem me dou por satisfeito. Com as mãos nos bolsos da calça, com a garrafa de vinho sobre a mesa, recostado ou sentado a meias na cadeira de balanço, olho pela janela. Se chegam visitas, recebo-as como se deve. Meu empresário está sentado na antecâmara: se toco a campainha, acode e escuta o que tenho a dizer-lhe. De noite quase sempre há função e obtenho êxitos já mal superáveis. E se ao sair dos banquetes, das sociedades científicas ou das gratas reuniões entre amigos, chego à casa a horas avançadas da noite, ali me espera uma pequena e semiamestrada chimpanzé, com quem, à maneira simiesca, passo muito bem. De dia não quero vê-la, pois tem no olhar essa loucura do animal perturbado pelo amestramento; isso unicamente eu o percebo, e não posso suportá-lo. . (KAFKA: s/d, p. 105/106)

Ulysse, em seu discurso, percorre caminho inverso ao de Pedro Rubro, narrando as circunstâncias que o levaram da condição de criatura racional e civilizada a uma bestialidade imposta e da qual, através de seu depoimento, buscava escapar.

Após esse evento, tendo sua racionalidade reconhecida, Ulysse recebe roupas para vestir, é retirado de sua jaula, passando a viver em um quarto no centro de pesquisas e começa a auxiliar os chimpanzés em suas experiências com humanos. É então que Ulysse descobre que os experimentos que os macacos realizam vão muito além dos testes psicológicos de capacidade cognitiva e condicionamento: em Soror, os homens são utilizados em cruéis práticas de vivissecção.

Aquele humano tivera toda uma zona da área occipital removida. Não podia mais distinguir a distância ou a forma dos objetos, uma inabilidade que manifestava através de uma série de gestos desordenados cada vez que uma enfermeira se aproximava dele. Era incapaz de desviar de um sarrafo colocado no seu caminho. (...)

Com meu estômago pesando por essa sucessão de horrores acompanhados pelos comentários de um chimpanzé risonho, eu vi homens parcial ou totalmente paralisados, outros artificialmente privados da visão. (...)

‘Aqui,’ ele disse com ar misterioso, ‘nós fazemos pesquisas mais delicadas. Não é mais o bisturi que entra em ação, é algo bem mais sutil – estimulação elétrica de certos pontos do cérebro. Desenvolvemos alguns experimentos notáveis. Vocês fazem esse tipo de coisa na Terra?’

'Sim, nos macacos!’ eu retruquei em fúria. (BOULLE: 1966, p. 153)

A fúria de Ulysse diante de tais práticas é imediata e pouco racionalizada; porém, o que há por trás desse sentimento nada mais é do que a percepção intuitiva de que aqueles humanos, mesmo privados de linguagem, de racionalidade, de plena cognição, possuem sensibilidade, capacidade de sofrer ou sentir prazer e de valorar tais experiências como boas ou más – elementos esses que condicionam direitos naturais tais como o direito à vida, à liberdade, à integridade física. A fúria de Ulysse é a manifestação primeira de uma aversão moral frente a uma prática antiética.

Pode-se dizer que, vivenciando o reverso da situação que ocorre no planeta Terra, onde macacos são vitimados em experimentos similares, Ulysse é forçado ao mais legítimo exercício ético, ou seja, colocar-se no lugar do outro, analisar a ação em questão e avaliá-la como boa ou má não do ponto de vista daquele que pratica a ação, mas sim da desprivilegiada posição daquele ser que sofre seus efeitos e consequências. Assim, Ulysse reaprende o que jamais poderia ter esquecido desde que encontrara os macacos racionais pela primeira vez, desde que os vira caçando impiedosamente os humanos: o planeta Soror não é um lugar amigável ou sequer seguro para seres humanos, assim como a Terra não é um lugar em que os animais não-humanos possam viver suas vidas com plenitude e liberdade. Seja em que lugar do cosmos for, o que restaria à racionalidade senão colocar a si mesma em um trono e, do alto dele, praticar dominação sobre todo o resto?

A partir daí, a trama se encaminha para seu desfecho. A tranquilidade e a segurança conquistadas pelo protagonista depois de seu discurso na conferência ficam ameaçadas quando as autoridades símias descobrem que a humana primitiva Nova, ainda confinada no centro de pesquisas, está esperando um filho de Ulysse, o qual, cogitam, sendo o início de uma potencial linhagem de humanos racionais, pode vir a constituir um perigo ao futuro da sociedade símia e seu domínio sobre os homens.

Sem revelar detalhes do epílogo, cabe ressaltar que, até o final, o romance de Boulle consegue surpreender e entreter ao mesmo tempo em que suscita questionamentos filosóficos: de onde vem a resistência que nós, indivíduos da espécie homo sapiens, temos em aceitar que somos apenas animais e que tantos outros animais são tão moralmente relevantes quanto nós mesmos? Negar a existência dessa dimensão que se pode denominar “racionalidade”, “alma” ou “psiquismo” nos animais não seria uma forma de exercício de poder e mecanismo de dominação, assim como já foi perpetrado por nós, humanos, contra outros grupos humanos? Quão íntima é a relação entre “humanidade”, “racionalidade” e “opressão”?

Referências:

BOULLE, Pierre. Monkey Planet. Harmondsworth: Penguin Books, 1966.

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Cia. Das Letras, 2007.

KAFKA, Franz. A Colônia Penal. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/d.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Vozes Vegetarianas na Literatura: Coetzee

Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2003, o sul-africano John Maxwell Coetzee faz eco à ideia defendida por Bashevis Singer, outro laureado, de que os homens escravizam, torturam e exterminam em massa os animais, assim como os nazistas fizeram com os judeus. Tal concepção surge em diversos trabalhos seus. O exemplo mais óbvio é o livro “A Vida dos Animais”.

Convidado a proferir uma palestra na Universidade de Princeton, o escritor surpreendeu sua audiência. Em lugar de um ensaio teórico, ele leu esta inquietante narrativa sobre a relação entre os homens e os animais. O romance é protagonizado por uma escritora, Elizabeth Costello, que, assim como Coetzee, se prepara para um ciclo de conferências e discorre sobre as questões filosóficas e éticas que envolvem o nosso trato com os animais. Num bem articulado jogo entre ficção e realidade, teoria e prática cotidiana, Coetzee nos conduz por questionamentos sobre a vida e a razão. A prosa inflamada de Elizabeth Costello, vegetariana radical, faz uma polêmica analogia entre o abate do gado bovino e o holocausto nazista. As resistências às suas idéias começam em ambiente familiar. Hospedada na casa do filho, ela tem que contrapor suas convicções ao dia-a-dia da família.

Talvez a porção final do texto, em que Elizabeth Costello faz um doloroso desabafo ao seu filho, seja a mais primorosa síntese que dele próprio se possa fazer:

Aparentemente, eu me movimento perfeitamente bem no meio das pessoas, tenho relações perfeitamente normais com elas. É possível, me pergunto, que todas estejam participando de um crime de proporções inimagináveis? Estou fantasiando isso tudo? Devo estar louca! No entanto, todo dia vejo provas disso. As próprias pessoas de quem desconfio produzem provas, exibem as provas para mim, me oferecem. Cadáveres. Fragmentos de corpos que compraram com dinheiro. É como se eu fosse visitar amigos, fizesse algum comentário gentil sobre um abajur da sala, e eles respondessem: 'Bonito, não é? Feito de pele judaico-polonesa, é o que há de melhor, pele de jovens virgens judaico-polonesas.' E aí eu vou ao banheiro, e a embalagem do sabonete diz assim: 'Treblinka – 100% estearato humano'. Será que estou sonhando, pergunto a mim mesma? Que casa é esta? E não estou sonhando, não. (...) Calma, digo para mim mesma, você está fazendo tempestade em um copo d´água. Assim é a vida. Todo mundo se acostuma com isso, por que você não? Por que você não?


Vegetariano convicto, Coetzee já afirmou:


Sim, sou vegetariano. Acho bastante repulsiva a ideia de rechear minha garganta com fragmentos de cadáveres e me surpreende ver quanta gente o faz todos os dias.