Rafael Bán Jacobsen
Tu abres a porta com um
ranger ferido e enxergas o apartamento vazio, congelado na luz cinza da manhã.
Sombras de quadros e móveis restam impressas nas paredes; as tábuas do piso
exibem arranhões de velhas coisas arrastadas e de passos ausentes, como se
pedissem misericórdia. A família foi levada há quase um mês, compartilhando o
destino de todas as outras no mesmo prédio – e de tantas mais que também
habitavam o gueto. É assim: para além dos muros, apenas sob a mira dos
soldados.
No batente, a mezuzá[i]
continua à espera de reverência. Tu a tocas para depois beijar os dedos em
instante de arrepio. Um passo adiante, o estalo da madeira e um latido cortado
de dor. Acordes de raiva assomam por trás do alarme, aos estilhaços. Apesar da
advertência, avanças pela sala pequena em direção ao quarto, até que o espectro
do cachorro vem ao teu encontro, aguerrido mesmo na imprecisão das três patas
que lhe sobram, a quarta levantada, contraída em torno de um furo de bala. Monstros,
tu murmuras, enquanto estendes a mão em convite manso. A resposta vem com outro
latido, esgarçado entre os dentes agora expostos, e o cão recua.
Surgem lembranças de todas
as ocasiões em que o viste levado pela coleira, perambulando nas ruas do gueto
junto ao menino mais novo ou ao calado pai. A pelagem tinha uma uniformidade
castanha de açúcar queimado, cobrindo a musculatura orgulhosa e plena de
movimentos, que te impressionava tanto quanto a postura de guardião. Agora,
porém, encontras um corpo magro, parecendo suspenso pelas vértebras pontiagudas,
mal cobertas por raros amarelados – animal cingido de tremores e exilado na
própria fome. Quase um mês. Mesmo assim, há força para o embate, e ele rosna a
impaciência de expulsar o intruso que vê em ti. Insinuas dobrar os joelhos –
talvez, à mesma altura que ele, possa haver concórdia –, mas o cão se coloca em
posição de ataque. Vem comigo, tu falas no ritmo lento das promessas, eu só
quero ajudar. Inclinado à frente, em face ao confronto, tu vês, nas pupilas
enevoadas que em ti se prendem, uma fúria que não consegue faiscar porque, no
íntimo, é desamparo. Tecendo e destecendo fios de solidão e fome, ele espera o
retorno dos seus, desconhecedor da nau presa a trilhos sem redenção, dos
gigantes canibais que aprisionam em seus ventres de arame farpado, do canto
volátil e venenoso das sereias, do ciclope que abre seu imenso olho vermelho
sobre o gueto, sobre Varsóvia, sobre o mundo.
Riscando as laterais do
focinho, lágrimas secas testemunham a liquidez perdida dos dias cheios, falam
de uma certeza de adeus. O cão sabe e quer esperar. Joga as patas dianteiras à
frente enquanto empina a cauda, como se cruzasse espadas. Por três vezes ainda,
exclama seu édito de banimento em agudos assombrados, reivindicando para si a
posse do universo desfeito que ousaste invadir. Depois, como se lesse em tua
inércia a compreensão última do sacrifício, retorna por onde veio. E o gesto te
enche de espanto, porque é escolha.
Tu retrocedes, suspirando
vertigens, querendo entender teu diálogo com a renúncia. Fechas a porta para tanta
fidelidade e, no desamparo que sufoca enquanto te afastas, chegas a ignorar a
mezuzá, sentinela muda e sem sangue.
[i]
Rolo de pergaminho que contém duas importantes passagens bíblicas e que é posto
em um estojo fixado no batente direito das portas. A mezuzá deve ser afixada no
umbral direito de cada dependência do lar, sinagoga ou estabelecimento judaico,
como lembrança do Criador. Os judeus costumam beijar a mezuzá toda a vez que
passam pela porta, para lembrar as orações que estão contidas ali dentro e os princípios
do judaísmo que elas carregam. O estojo costuma ser decorado com a letra
hebraica “shin”, que é a letra inicial da frase “shomer dlatot Israel”
(“guardião das portas de Israel”).