domingo, 3 de janeiro de 2010

nova ética

por Rafael Bessa

adentro rubras paredes onde não há luz do dia
percebo seres, de tristes olhos, tumores, agonia
seus corpos dilacerados apesar da senciência

que crime cometeram estes seres tão chagados?
para, como messias das línguas, serem sacrificados
para serem torturados qual redentores da ciência

e pergunto se em mim existe raro defeito
por ainda ter os olhos ligados ao peito
por não saber ver razão na boca que devora

pois ao visitar o não-humano sofrimento
o rosto que vê é o mesmo em lamento
e o olho que crê é o mesmo que chora

qual Francisco pregando à outras espécies
para a glória celeste elevo minhas preces
clamando compaixão por aqueles soturnos olhares

e sei que de extremismo ou loucura me acusarias
por não querer jaulas maiores e sim jaulas vazias
mas urge nova ética além de hábitos alimentares

urge socorrer aqueles olhares
urge nova ética

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É a minha primeira postagem desde que o Daniel me convidou para o blog, a quem agradeço muito o convite e me desculpo pela demora em contribuir. Apesar de escrever poesia há anos, nunca havia escrito sobre especismo, libertação animal ou veganismo. Espero poder contribuir com frequencia daqui pra frente.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Vozes Vegetarianas na Literatura: Bashevis Singer


Isaac Bashevis Singer (1904-1991), judeu e Prêmio Nobel de Literatura, foi outro escritor que abordou brilhantemente a temática vegetariana, em várias de suas obras. A tese de Bashevis Singer é clara: todos nós, seres humanos, por conta de nossos hábitos de consumo e de nossa cultura antropocêntrica, somos responsáveis por um crime monstruoso, um verdadeiro holocausto animal. O vegetarianismo de Bashveis Singer é bastante antológico, sendo citado, por exemplo, pelo escritor Moacyr Scliar no seu prefácio à coletânea “47 Contos de Isaac Bashevis Singer”, publicada pela Companhia das Letras em 2004. A menção de Scliar ao vegetarianismo de Singer, porém, não é lá muito abonadora, expressando bem o senso comum acerca dos vegetarianos, a imagem distorcida que as pessoas em geral têm daqueles que decidem não compactuar com a violência contra os animais e, por isso, optam por uma alimentação sem carne: “Não era fácil conviver com Singer, um homem que tinha suas idiossincrasias; era inclusive vegetariano.”


Singer, nascido na Polônia, filho e neto de rabinos hassídicos, emigrante para Nova York em 1935, construiu um universo ficcional que remete continuamente à infância e à adolescência vividas na Europa e à atmosfera de intensa religiosidade em que foi educado, de onde vêm os elementos predominantes de seu estilo e o estímulo da intenção de rever um “mundo morto”, o das pequenas comunidades judias nas aldeias polonesas (chamavam-se shtetl as povoações ou bairros de cidades com uma população predominantemente judaica). Seus contos, escritos de maneira simples, sem grandes sofisticações – revelando, no entanto, grande capacidade criativa e penetração crítica –, são comparáveis somente aos contos dos grandes nomes da literatura universal, como Guy de Maupassant, Edgar Allan Poe, Hoffman e Machado de Assis. Toda essa criatividade e essa crítica são, frequentemente, usadas a favor da causa vegetariana.


Um exemplo que fala por si é o seguinte trecho da novela “O Penitente”, em que o narrador, um judeu relapso que decide se voltar à espiritualidade e abandonar as coisas mundanas, tornado-se justo e virtuoso, se questiona sobre a exploração dos animais:

Há muito eu chegara à conclusão que o tratamento do homem para as criaturas de Deus torna ridículos todos os seus ideais e todo o pretenso humanismo. Para que este estufado indivíduo degustasse seu presunto, uma criatura viva teve de ser criada, arrastada para sua morte, esfaqueada, torturada e escaldada em água quente. O homem não dava um segundo de pensamento ao fato de que o porco era feito do mesmo material e que este tinha de pagar com sofrimento e morte para que ele pudesse saborear sua carne. Pensei mais de uma vez que, quando se trata de animais, todo homem é um nazista.


Entre os contos de Bashevis Singer, que se tornou vegetariano na metade da década de 1960, destaca-se a pequena obra-prima “O Abatedor”, que conta a história de um homem, Yoineh Meir, um homem que, pela sucessão natural, seria o próximo rabino de sua aldeia, Kolomir, mas que, por causa de picuinhas dentro da comunidade judaica, acaba sendo preterido por outro. Para que não ficasse sem fonte de renda, porém, “caridosamente” o nomeiam o novo abatedor ritual da cidade. E é aí que começa o pesadelo do pobre homem, sujeito de alma sensível e que não suporta a visão de sangue. Frente à sua relutância em assumir a nova ocupação, o próprio rabino lhe diz que o homem não pode ser mais compassivo que o Todo-Poderoso, fonte de toda compaixão (não é mera coincidência qualquer semelhança com o clássico e tolo comentário “mas Deus fez os bichinhos para serem Comidos” que vegetarianos ao redor do mundo, há séculos, são obrigados a escutar todos os dias). Yoineh cede, assume sua nova função, mas o dia-a-dia no ofício se torna uma tortura:

Muitas vezes por dia, Yoineh Meir repetia para si mesmo as palavras do rabino: “Um homem não pode ser mais compassivo que a Fonte de toda a compaixão.” A Torá diz: “Deves matar teu rebanho e tua manada conforme te ordenei.” No monte Sinai, a Moisés foram ensinados os modos de matar e abrir o animal em busca de impurezas. É tudo um mistério de mistérios: vida, morte, homem, animal. (...)
E, no entanto, Yoineh Meir não encontrava consolação. Cada tremor da ave abatida provocava em Yoineh Meir um igual tremor nas entranhas. A morte de cada animal, grande ou pequeno, causava-lhe tanta dor quanto se estivesse cortando sua própria garganta.

O pobre homem passa a ter dificuldade para dormir, para comer, passa a viver em eterno drama de consciência e, cada vez mais, passa a questionar os dogmas religiosos e sua visão antropocêntrica (muito ao contrário do que se poderia esperar em um texto de um autor que, como é o caso de Bashveis Singer, teve sólida formação e vivência religiosa):

Yoneh Meir estava achava que nem o próprio Messias podia redimir o mundo enquanto se praticasse injustiça contra os animais. O certo era que tudo pudesse renascer dos mortos: cada bezerro, peixe, mosquito, borboleta. Até no verme que rasteja na terra fulgura uma centelha divina. Quando se abate uma criatura, abate-se Deus...
“Ai de mim, estou perdendo a cabeça!”, murmurou Yoineh Meir. Uma semana antes do Ano-Novo, houve um aumento nos abates. O dia inteiro Yoineh Meir passava ao lado de uma fossa abatendo galinhas, galos, gansos, patos. Mulheres empurravam, discutiam, tentavam chegar primeiro ao abatedor. Outras faziam piadas, riam, brincavam. Voavam penas, o pátio estava cheio de grasnidos, de tagarelice, do canto dos galos. De vez em quando, uma ave gritava como um ser humano. (...) Lá ficou até o pôr-do-sol, e o fosso se encheu de sangue.

Após esse dia de intensa matança às vésperas do ano-novo, Yoineh Meir vai à loucura: na calada da noite, sem conseguir conciliar o sono, sai de casa, joga fora objetos sagrados e clama:

“Não quero nenhum dos Seus favores, Deus! Não tenho mais medo do Seu Juízo! Sou um traidor de Israel, um transgressor por vontade própria”, Yoineh Meir gritou> “Tenho mais compaixão que o deus Todo-Poderoso, mais, mais! Ele é um Deus cruel, um Homem de Guerra, um Deus de Vingança. A Ele não sirvo! O mundo está abandonado!”. Yoineh Meir riu, mas as lágrimas correram por suas faces como gotas ferventes.

Tresloucado, fora de si (mas, paradoxalmente, experimentando uma lúcida visão do horror dos crimes perpetrados contra os animais com as bênçãos das religiões), ele se embrenha na floresta,em direção ao rio, aos gritos:


“Pai do Céu, sois um matador!”, gritou uma voz dentro de Yoineh Meir. “Sois um matador e o Anjo da Morte! O mundo inteiro é um matadouro!”

No final do conto, surge, em toda sua força, o protesto final de Yoineh Meir:


Yoineh Meir caiu num choro que ecoou pela floresta em muitas vozes. Levantou o punho ao céu: “Demônio! Assassino! Fera devoradora!”.

Dias depois, seu corpo é encontrado boiando no rio.


Outro conto interessante, embora bem menos dramático, é “O Cabalista de East Broadway”. Nele, um escritor judeu que vive em Nova Iorque, claramente um alter ego do próprio Singer, narra-nos seus casuais encontros, ao longo de vários anos, com uma figura singular: Joel Yabloner, um velho autor iídiche especializado na Cabala e que, a despeito de ter muitos admiradores em Israel, preferia viver quase anonimamente e de maneira espartana nos Estados Unidos. Ao descrever o cabalista, o escritor-narrador, um ovolactovegetariano, não deixa de demonstrar sua admiração pelo fato de Yabloner ser um vegetariano estrito, embora a descrição de Yabloner, correlacionando seu estrito vegetarianismo com uma postura ascética, seja um tanto caricata:


Joel Yabloner, alto, magro, o rosto amarelo e enrugado, tinha a cabeça brilhante sem um único fio de cabelo, o nariz seco, faces encovadas, um pomo-de-adão saliente no pescoço. (...) Vivia com os poucos dólares por semana que o Sindicato dos Escritores Iídiches podia gastar com ele. Seu apartamento na rua Broome não tinha banheiro, telefone, aquecimento central. Ele não comia nem peixe, nem carne, nem mesmo ovos ou leite: só pão, legumes e frutas. Na cafeteria, sempre pedia uma xícara de café preto e um prato de ameixas.


Certo dia, após assistir quase por acaso a uma palestra proferida por Yabloner, o escritor-narrador é convidado para participar de um banquete em homenagem a ele:


Descobri que a palestra havia sido organizada por um comitê que se encarregara de publicar a obra de Yabloner. Um dos membros do comitê me conhecia e perguntou se eu gostaria de comparecer a um banquete em honra da Yabloner. “Como o senhor é vegetariano”, acrescentou, “é a sua chance. Vão servir apenas vegetais, frutas, nozes. Quando se tem a chance de um banquete vegetariano? Uma vez na vida.”


Pode-se dizer, então, que esse conto ilustra, com propriedade e leveza, certos aspectos mais corriqueiros da “vida vegetariana”, como, por exemplo, a dificuldade em encontrar alimentos em eventos sociais e uma certa “tensão” existente entre vegetarianos estritos (ou veganos) e ovolactovegetarianos.
Haveria muitos outros exemplos, mas vamos ficando por aqui.

Vale a pena, contudo, relatar um emblemático episódio da vida do escritor. Quando Singer desembarcou em Estocolmo, no dia 6 de dezembro de 1978 para receber o Prêmio Nobel, foi cercado por dezenas de jornalistas que o bombardearam com dezenas de perguntas: “Por que o senhor escreve em iídiche?”; “Quais os escritores que mais o influenciaram?”; “O senhor está feliz pelo fato de o novo Papa ser polonês?”; “O senhor é vegetariano por motivo de religião ou por motivo de saúde?”. Singer só respondeu a esta última pergunta, legando-nos o que talvez seja a mais perfeita síntese da sua veg-visão de mundo: “Eu estou mais preocupado com a saúde dos animais do que com a minha própria.”