quarta-feira, 3 de novembro de 2010

AMIGOS

Não é que eu seja um apreciador de acampamentos masculinos, mas os caras me convidaram e eu não tinha mesmo aonde ir, há anos ando por aí sem ter o que fazer e então fui. Não fiz nada do que eles faziam: pescavam, falavam de mulheres, de proezas, e, pior, falavam de futebol, eu não entendo nada de futebol e assim, enquanto o assunto prosseguia cada vez mais edificante, e eles bebiam suas cervejas, tiravam peixes da água do riozinho, alguns dos quais devolviam à água depois, outros iam se debatendo para uns baldes, xingavam-se quando alguém falava alto demais, eu fui recolhendo umas folhas e fazendo diferentes chás, experimentando seus sabores, olhando para meus amigos e me sentindo... distante deles. Não fisicamente distante, porque nem gosto de andar muito no mato sem companhia, mas ocorre que a fala deles ia me dizendo cada vez menos respeito, até que me joguei ao chão, próximo à fogueirinha e tirei um cochilo, embalado por sussurros que mencionavam calcinhas, pênalties, juízes que roubam, técnicos bundões e mulheres que se fazem de difíceis.
Acordei e eles ainda estavam por ali, nem tinham percebido um barulho que vinha do mato. Se fosse um acampamento na América do Norte, eu pensaria que um urso, atraído pelo fogo e pela possibilidade de um lanche fácil, vinha nos visitar.
Mas era uma vaca.
A vaca surgiu por entre as moitas, distinguiu-me dos demais, me olhou de um jeito profundo, eu gostei desse jeito dela, me levantei um pouco porque também quis ficar alerta, vá que fosse um touro e disparasse, pisasse em cima de mim, era bom estar esperto, foi quando ela me disse: sou uma vaca, seu tolo. Não gostei de ela ter me chamado de tolo assim de cara, para em seguida me dar conta de que havia alguma coisa de muito errado em uma vaca falar comigo. Há que observar que ela tinha um jeito doce de me chamar de tolo, um tom de voz... herbívoro. Olhei para os caras, e eles seguiam fazendo tudo igual, nem notaram a vaca, já estavam mesmo bem bêbados e eu tive que perguntar a ela como é que, sendo um animal, conseguia falar. Não pareceu achar relevância na minha questão, mas mudou o tom de sua fala e disse que precisava de ajuda. Eu não sou um cara mau, ajudo quem me pede um troco no sinal, crianças desamparadas, mendigos solitários, homens que foram chutados pelas mulheres, pelos patrões e até pelos filhos, mulheres abandonadas, velhos sem família. Nunca pensei em ajudar uma vaca, mas não é por isso que deixaria de me esforçar. Perguntei o óbvio, o que ela precisava e ela contou que estava para ter um filho. Dei um pulo, não gostei nada da ideia, detesto sangue, jamais seria bombeiro, policial ou taxista justamente para não ter que atender partos, foi a primeira coisa que me ocorreu de dizer, e ela respondeu: Não seja estúpido, faço meus partos sozinha. Já tive onze filhos, nunca ninguém os viu nascer. Não gostei de ser chamado de estúpido, mas gostei de ter sido tranqüilizado quanto ao resto: só de pensar na grossura do cordão umbilical a ser cortado, na quantidade de sangue e no tamanho da placenta que ela talvez pudesse me pedir para enterrar, já me embrulhava o estômago.
Nada disso, ela continuou. Meu filho vai nascer e eu preciso de ajuda é depois. Não quero que mais um filho meu vire vitela, quero ser livre e dar liberdade a ele, e por isso preciso de um homem, porque não tenho alicate para cortar cercas. Ah, era só isso, cortar cercas pode ser tão fácil, não sei mesmo como touros, cavalos e tantos bichos se mixam para uns fiozinhos de arame. Fui até a camionete, passei por cima de dois corpos roncantes ao lado de garrafas vazias, me certifiquei de que tinha as ferramentas e, ao voltar, a vaca tinha desaparecido. Cogitei de ter sonhado, pensei nos chás de folhas estranhas que havia ingerido e tratei de voltar a me deitar. Não sei quanto tempo passou, mas já havia cantos de pássaros e uma cor azulada na noite, quando tomei um chute na barriga. Levantei de um salto e ali estava a amiga e seu filhote. Então era tudo verdade, havia uma vaca, e a vaca cumpria tudo o que prometera, o bezerro ali, de pé, todo lambido, como guri do interior no primeiro dia de aula. Ele me achava tão esquisito quanto eu achava toda aquela história. A vaca falou sorrindo: os meninos têm seus amigos imaginários, depois crescem e deus é o amigo imaginário dos homens grandes. Eles não suportam viver sozinhos a dura realidade que criam para si e para os outros, não aceitam a ideia de viver num pó do universo. Ok, ok, a vaca me considera um tolo estúpido idiota, mas não precisa me atacar com filosofias.
Ninguém mais ouvia a vaca, percebi que a voz dela entrava direto no processador do meu córtex. Então, amiguinha, qual é nosso próximo passo? Qual é o teu grande problema de ficar na fazenda? É tudo tão bonito aqui, esse silêncio do campo...
Ficar na fazenda? A minha vida na fazenda se resume ao seguinte: fico horas com as máquinas nas tetas me sugando até fazer feridas. Entopem-me de químicas cancerígenas para produzir mais, apesar de que o câncer vai para os homens que então apelam noite e dia para o amiguinho imaginário, que não os leve para junto dEle (são amigos de seus deuses, mas querem ficar aqui, longe deles). Para que eu sempre tenha leite, me inseminam artificialmente, sabe como é, né? Não tem nenhum touro por perto, que me escolha, que me namore, eu nem sei quem é o pai dos meus filhos. Mas eles nascem, e depois que eles nascem, mal bebem o colostro e são tirados de mim. Seus gritos de dor me perseguem noite e dia, eles me chamam e não podem me escutar. Eu também grito. Eles são levados para o mais estúpido dos confinamentos, preparam-se para ser vitelas.

Ohh, carne de vitela, saborosíssima, tenríssima. Vejo a moça, tão chic, sentada com seu lindo vestido no restaurante igualmente chic, aonde só vão pessoas dignas, ricas, cheias de bons modos e de bom gosto: ela crava o garfo no pequeno pedaço de músculo do meu pequeno filho que não chegou a conhecer a luz do dia, que passou seis meses fechado num cubículo, impedido de se movimentar para não endurecer os músculos e para a moça dizer: que carne maciiiiiiia, derrete na boca! O rapaz a sua frente diz: eu gosto também, mas prefiro quando tem mais sangue no molho. Tem que cuidar o colesterol, ela diz preocupada com a saúde do namorado, a gente deveria comer mais peixe e carne branca, mas vitela, acho que vitela também é bom.
Vi toda a cena, não só essa do casal sofisticadinho, mas pensei nos peixes que meus amigos deixaram afogar-se no ar, nos churrascos que fazemos todo mês, nos bifinhos e guisadinhos do dia a dia, foi duro então olhar para a vaca, saber que toda aquela ânsia por viver e salvar seu filho iria ter fim quando a enfiassem num brete, sua cabeça sobre a bunda das outras, tentando buscar um ar no alto, uma visão privilegiada do que haverá na frente, o olho arregalado, a certeza da dor e do fim. Ela respondeu tentando me tranqüilizar: nós vamos conseguir. Olha aqui, eu lhe disse, tudo bem que estamos falando assim de cabeça a cabeça, mas vamos combinar que as coisas que eu “falo”, você escuta, mas as que eu “penso” são só minhas, tá bom?
Peguei o alicate, peguei um serrote e, por pura precaução, uma espingarda que eu não tinha a menor ideia como usar, mas que poderia impressionar a vaca e lhe dar confiança. Para onde vamos? Atravessar o rio, ela disse. Olhei para o barquinho dos meus amigos e não concebi como vaca, bezerro e eu caberíamos ali. Bobão, eu vou nadando. Sempre me ofendendo, sempre me ofendendo. Apesar de que bobão até que é meio carinhoso, não me importei tanto e era bom saber que as chances de morrer afogado diminuíam, eu não sei nadar. O bezerrinho foi atrás da mãe e eles chegaram antes de mim. Entramos na mata, andamos até o dia ficar bem claro. Cortei três cercas, subimos e descemos, nos embrenhamos em corredores, saímos em descampados, deitamos enquanto o danadinho tomava leite. Cheguei a pensar em pedir uns golinhos, mas ela já não ouvia os meus pensamentos conforme o combinado e então eu tomei água do rio. A indireta funcionou, e ela me disse: adultos não precisam de leite, leite é alimento de bebês e para isso cada bebê tem a SUA mãe. Eu também entendi a indireta, os bebês não deveriam tomar o leite das OUTRAS mamães. É isso que fazemos com as vacas: tomamos-lhes o leite. Tomar é um verbo que tem dois sentidos e os dois sentidos fazem sentido no que se refere ao leite das vacas.
Ia tudo muito bem, nós já tínhamos andado muito, atravessado muitas fazendas. Como uma tal história poderia ter um final feliz? Está claro que não poderia. Uma camionete se aproximou de nós em alta velocidade, mandou que parássemos, nós somos pacíficos, um homem tolo-estúpido-bobão, uma vaca gorda e dócil, um recém-nascido cansado. Os homens desceram do carro e nos examinaram. Interessaram-se mais pela minha amiga, reconheceram a marcação de suas ancas, reconheceram a cabanha, me ignoraram completamente e trataram de a atar à camionete. Pedi-lhes que, por favor, não fizessem isso, ela estava cansada, não conseguiria acompanhar um carro, que o bebê estava sem forças. Eles não me ouviam e seguiam a atando, falavam de outros assuntos, riam, fumavam. Arrancaram o carro e ela não conseguia andar, ia arrastada, o bezerro correndo atrás da mãe, em desespero. Tomei-me de fúria, decidi ser forte nem que fosse nos meus momentos finais. Arremeti-me contra um deles que ficara a pé, engatilhei a espingarda e me pus a disparar. Alguns deles correram, e em minutos, não eram mais três, mas passavam de vinte e vinham contra mim. Sem saber manusear a arma, errei muitos tiros, mas matei uns três ou quatro. Depois lutei corporalmente e acreditei ter quebrado um ou dois pescoços. Fui ficando cada vez mais forte, batia em um, em outro. Os da camionete voltaram para acudir os companheiros e a essa altura eu também já não tinha forças. Deixei-me cair e olhei pela última vez para a vaca, e ela então se pôs a me agradecer: não lute mais por mim, já foi tão bom assim, isso que eu aprendi com os homens de ter amigo imaginário me deu forças para chegar até aqui, morrerei lutando para ser livre, tenho um filho que sabe que não sou eu a abandoná-lo. Obrigada, muito obrigada... por nesta noite ter sido meu amigo imaginário.

5 comentários:

Anônimo disse...

Esse blog é sobre veganismo ou ateísmo?

Deus é amigo imaginário? Só tolice a sua, com o perdão da palavra.

No mais, prove que Deus é um amigo imaginário.

Daniel Kirjner disse...

Eu acredito em Deus, mas prove você q deus não é uma criação do imaginário social. Prova não existe, por mais poderosa q seja a crença. Não tente sublimar suas frustrações metafísicas sob este falso disfarce pragmático! Um texto enorme e belo sobre veganismo e o pobre de espírito se atém a apenas uma frase do meio de um parágrafo. Este é um blog vegano, o texto da autora é vegano, basta o senhor ou senhora ter o trabalho de lê-lo. Agora, se acaso o indivíduo acha q aqui iremos censurar as posições de qualquer autor ateu ou religioso, este não é o seu lugar.As fogueiras da inquisição e o governo Médici acabaram a muito tempo. Este é um espaço democrático em que convivem no momento autores ateus, cristãos, judeus e agnósticos, cada um pleno no direito de manifestar suas próprias convicções.

Organizador do Blog.

Rafael disse...

Belo desfecho do texto, Nazareth. Ah se esses amigos imaginários fossem mais presentes, mais atuantes, mais armados... Quanto ao comentário sobre Deus, ele é meu amigo imaginário e nem por isso menos significativo em sua eficácia simbólica. É estúpida a polarização entre ateísmo e veganismo. O autor tanto sabe disso que preferiu se esconder no anonimato.

Parabéns aos colaboradores e mantenedores do blog!!!

abraços,

Suci

Anônimo disse...

Texto maravilhoso, perfeito! Só o que tenho a dizer.

Davi B. disse...

Veja,

O texto está bem escrito, principalmente no começo, tem ritmo, tem estilo. Mas ter uma temática vegan, apesar de ser seu mote, é seu grande defeito, porque vira panfletário e, para quem não é adepto, como eu, o final torna-se desnecessário, tanto que desisti de ler, mesmo tendo gostado do início.

Caso prefira continuar nessa linha, acredito que o melhor seja ser mais sútil, e assim alcançar um público maior.

Abs