sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O velho e um porco

Estréio hoje, propositalmente no aniversário de morte do grande Barry Horne, como um lembrete a todos nós de que sempre podemos fazer mais, mesmo encarcerados, mesmo quando tudo e todos parecem estar contra nós. Um cumprimento vegano a todos meus colegas de blog e a todos os abolicionistas ativistas pelo mundo afora. Força e coragem, companheiros de luta! Segue um pequeno conto nessa sexta-feira tão significativa. Espero que gostem. Beijos vegans ;*


A cena se repetia todas as sextas. Era como se tivessem esquecido ligado o botão de repetir. Nada mudava, nada se acrescentava nem retirava. Eram sempre o velho e um porco qualquer; o primeiro vivo e o segundo morto, sempre.

O porco gratinado e com uma maçã vermelho-sangue na boca.

O velho... Bem, o velho, velho; a pela enrugada e frágil como a imitar papel de seda molhado.

O velho era extremamente pálido e o porco extremamente mulato, alteravam a coloração cadáver / vivo, o leitor deve ter notado.

A louça de porcelana fina e talheres de prata davam a impressão de que o velho esperava alguém. Mas era só isso mesmo, impressão. O único que lhe fazia companhia era o porco, era também o único com quem o velho conversava, embora nunca respondesse, é obvio. Não que o velho realmente se importasse...

- Deverias orgulhar-se de estar à minha mesa! Que cara mais inexpressiva!

A rotina, que terminava com o velho e o porco à mesa, começava sexta de manhã, quando o velho saia de casa para ir ao açougue. Vestia terno e sapatos lustrados, ignorando a falta de classe de usá-los em uma estrada de terra como aquela.

O açougueiro não perguntava, não cumprimentava. Conhecia o velho de longa data. Looooonga data, desde a época em que era menos velho. O valor era sempre o mesmo, a compra sempre muda e monótona. Dinheiro. Pacote com o porco. Troco. Nota fiscal. Sino da porta anunciando a saída do velho.

Devo parar de narrar a irritante rotina das sextas feiras do velho, pois, se meus recursos literários não falham, esta é uma narrativa muito chata e o leitor já deve estar entediado.

Dizem que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, eu digo que água mole -se for esperta- em pedra dura tanto bate até que muda o curso e dá a volta na pedra.

Esta história muda de curso numa sexta-feira, que não era 13 nem de lua cheia, acredito, pois foi um dia de bastante sorte para o velho e para um porco. Vamos aos fatos.

Terno. Sapatos lustrados. Estrada de terra. Açougue. Tudo igual até aí.

- O homem não pôde vir. Está cumprindo pena de um dia na cadeia. Semana que vem está de volta.

O velho, se não fosse pela artrite, teria pulado para trás com o susto de ouvir a voz do açougueiro. Não era mudo, afinal.

- Que homem? – perguntou depois de um tempo

- O algoz, carrasco, abatedor, encapuzado... Sei lá como o chamavam na sua época.

Parou para pensar, o velho. Julgava-se esperto mas não via motivo para aquela quebra de silêncio por parte do açougueiro.

- E então?

- Então, o quê? O homem não veio, não tem porco!

Se fosse possível, o velho teria ficado mais pálido que já era:

- O curral é nos fundos que bem sei. Mate um bicho, pago o dobro se for preciso.

- Eu não! Não, senhor! Quem mata é o homem. Eu só fatio e vendo. Não me sujo de sangue nem pelo dobro nem pelo triplo.

- Cinco vezes mais, que seja.

O açougueiro considerou a proposta. O velho esperou.

- Por cinco vezes, leva o bicho vivo. Mas matar, eu que não mato.

Irritado, mas sem alternativas, o velho acabou concordando em pagar cinco vezes o preço habitual por um porco vivo. Arrumaram um sisal tosco e improvisaram uma coleira. O açougueiro demorou um pouco para conseguir agarrar um dos rabinhos cor-de-rosa que corriam fazendo o maior estardalhaço. O velho, impaciente, pagou e saiu segurando o sisal com as duas mãos, o porco não passava dos 30 centímetros de altura, mas era um bicho forte e não se brinca com o jantar, muito menos quando ele pode derrubá-lo no chão.

O porco virou as orelhas ao ouvir o sino da porta, e depois cheirou cada grão da estrada de terra. A curiosidade do bicho estava atrasando o velho e ele não gostava disso. Considerou matá-lo ali mesmo, assim não teria sangue para limpar e nem porco para aturar. Porém, tomada a decisão, notou que não tinha um facão e continuou andando e xingando, andando e xingando.

A viagem pareceu durar mais, culpa do bicho, o velho sabia. Amarrou-o na varanda de frente e foi para a cozinha buscar um facão, o maior que encontrasse. Custou achar. Teve de afiá-lo para facilitar o trabalho.

O porco não estava lá, na varanda. O velho amaldiçoou-se por não ter feito mais forte o nó. O passado ao passado, decidiu, e foi procurar o porco.

Voltou quase toda a estrada de terra. E depois foi na direção oposta. Por fim, sem sucesso, decidiu que um porco não valia tamanho esforço e a rotina que se quebrasse uma vez, oras, escolha é que não tinha.

Em casa, decidiu descansar os pés para agüentar uma nova caminhada pela manhã. Queixar-se-ia na prefeitura a pouca eficiência do açougue. Ah... se ia!

Tirou o terno, os sapatos lustrados e foi até o quarto.

Quase enfartou. Por um momento, imaginou que realmente tinha enfartado, estaria morto, e tudo faria, pois, sentido. Era o inferno, só podia ser. Bem ali, em cima de seu edredom de marca, de seu colchão de marca, estava o porco, e dormia.

- Bicho estúpido! – até cuspiu saliva de tão bravo, o velho

O porco deu um salto que o fez fincar as unhas no edredom. O velho podia sentir seu fedor mesmo àquela distância. Imaginou se seria possível enforcá-lo, pois merecia morte mais lenta que um simples facão no pescoço.

- Porcaria de animal nojento! Deverias orgulhar-se de estar à minha mesa!

E, como se fosse mágica, o “um porco qualquer” pela primeira vez respondeu:

- Róin-róinc!

É, o inferno... era mesmo o inferno. O velho desejou não ter comido tanta gordura em vida, assim não teria enfartado e não estaria ali, com um porco insolente respondendo-lhe os insultos.

- Ainda bem que ainda tens o sisal no pescoço! Será mais fácil pendurá-lo na...

- Róin-róin! Roinc!

O velho respirou fundo e esticou o braço para alcançar o bicho, ignorando o fato de ter sido interrompido por um porco. O porco empurrou as mãos dele com o focinho gelado e sentou-se na cama, bufando irritado.

Ora, pois, quem haveria de acreditar? Estava sendo desafiado por um jantar! Um jantar e nada mais do que isso!

O velho já rangia os dentes preparando-se para uma nova investida quando o porco pulou da cama e saiu correndo. Correu até um canto do quarto e grunhiu virado para o velho perplexo. A cabeça mexendo de cima para baixo como se propusesse um duelo.

Antes que o velho pudesse alcançá-lo, já disparava novamente. O porco correu entre as pernas dele, num oito bem feito e, num pulo, parou sentado na cama de novo.

Então o velho compreendeu. Era uma brincadeira! O bicho estúpido não passava de um filhote tonto que queria brincar. Talvez não tivesse enfartado, no fim das contas, era apenas muito azarado.

Enquanto pensava o que faria com “aquilo”, cometeu o erro mais grave possível, aquele que todo abatedor considera regra número um: nunca olhe nos olhos!

O velho olhou. Olhou e viu.

Lá estavam elas, duas azeitonas brilhantes que piscavam para ele. Eram tão expressivas... tão vivas... tão ingênuas... tão... tão inocentes.

Droga, pensou.

Aproximou-se mais devagar. O porco não se mexeu. Cada passo que dava o velho era uma nova conquista. Mas o porco não parecia mais querer brincar. O velho finalmente estava perto suficiente.

Um estalo forte fez-se ouvir.

Era o tapa que o velho dava naquela bunda rosa e suja de barro do próprio jantar.

- Ande, bicho estúpido! Já lhe tirei o sisal e abri-lhe a porta! Foge logo, que a sorte lhe sorriu!

Bateu mais uma vez, e o porco só se mexeu o suficiente para retomar o equilíbrio.

- Que mais espera que eu faça?! Comida não tenho que tu eras meu jantar!

- Róin-róinc!

O porco novamente empurrou a mão do velho, dessa vez foi como se implorasse para não apanhar mais. Droga de bicho estúpido.

Bateu mais uma vez. A própria mão latejou de dor. O porco não se mexeu.

- Fique aí então. Azar o seu!

O velho deu de ombros e decidiu jantar a maçã vermelho sangue que teria usado para enfeitar o porco. Depois trataria de expulsar o bicho da casa.

Lavou a maçã, secou-a, preparou a louça e os talheres. Quando voltou à mesa derrubou a garrafa de vinho que levava. Sentiu o sangue subir-lhe à cabeça e o queixo cair. Sentado em sua cadeira, da sua sala-de-jantar, da sua casa, estava o porco estúpido!

Balançou a cabeça, fatiou a maçã em dois, sentou-se em outra cadeira e ceou na agradável companhia do porco... vivo.

Descobriu mais tarde que tratava-se de uma porca, fêmea. Deu-lhe um nome. Banhou-a, enfeitou-a com um laço no pescoço, comprou um travesseiro cor-de-rosa sob medida.

E as coisas continuaram a ser como sempre...

Ou quase como sempre. Eram agora, todos os dias, o velho e um porco, o primeiro vivo e a segunda também. Aliás, o primeiro mais vivo do que nunca, pois, se prestar atenção, o leitor há de notar um leve e discreto sorriso em meio àquela face de papel de seda molhado. Quem dera aos porcos terem ao menos uma chance de responder os comentários numa mesa de jantar. Quem dera aos porcos terem a chance de fazer-se ver aquelas azeitonas brilhantes e inocentes.

Quem dera também a todos os velhos do mundo ter a chance de cear em companhia do próprio jantar... dessa vez, vivo e agradecido... ou viva e agradecida, para fazer jus também às fêmeas.

“Talvez realmente tenha enfartado...”, concluiu finalmente o velho, “...mas esqueceram de mostrar-me o caminho ao inferno. Esse é sem dúvida o paraíso."

- Não concorda, minha cara?

- Róinc-róinc! – e a porca abanou o rabicó rosado, contente e viva, como um filhote de porco deve ser

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