domingo, 25 de outubro de 2009

Vozes Vegetarianas na Literatura: Swift


No romance satírico “As Viagens de Gulliver”, do irlandês Jonathan Swift (1667-1745), encontramos a percepção de que o vegetarianismo é uma escolha racional e virtuosa.

A narrativa inicia-se com o naufrágio do navio onde Gulliver seguia. Após o naufrágio, ele acaba sendo levado pelas circunstâncias às mais pitorescas terras. O episódio mais conhecido é, certamente, aquele em que Gulliver é arrastado para uma ilha chamada Lilliput. Os habitantes dessa ilha, que eram extremamente pequenos, estavam constantemente em guerra por futilidades. Nosso interesse, porém, está na última das viagens de Gulliver.

Em sua última viagem, Gulliver encontra os Houyhnhnms, uma raça de cavalos que possuía muita inteligência, e os Yahoos, uma raça humanóide imperfeita, de comportamento selvagem. Dentro da alegoria, os Yahoos representam o homem em sua natureza mais primitiva, e os Houyhnhnms personificam o homem em seu mais elevado potencial, atingido com o exercício pleno da razão. A diferença entre as duas raças é marcada de diversas formas, inclusive pela dieta que seguem. Os Houyhnhnms comem basicamente cereais, enquanto os Yahoos são contumazes comedores de carne. Associando-se o tipo de alimento consumido às demais características de cada uma dessas raças encontradas por Gulliver, fica clara a idéia subjacente de que uma dieta carnívora tende à selvageria enquanto um estilo de vida vegetariano se associa a maior discernimento e clareza mental.

Nas palavras do romancista:

(...) deparei com três das detestáveis criaturas que encontrara após minha chegada e que se alimentavam de raízes e da carne de alguns animais que ao depois verifiquei serem burros e cães e, de onde em onde, uma vaca, morta por acidente ou moléstia. (...) Possuíram-me um horror e um pasmo indescritíveis quando observei, nesse abominável animal, uma perfeita figura humana: tinha o rosto, efetivamente, achatado e largo, o nariz deprimido, os lábios grossos e a boca enorme; mas as diferenças são comuns a todas as nações selvagens (...). O garrano alazão ofereceu-me uma raiz, que segurava entre o casco e a quartela; tomei-a nas mãos e, depois de havê-la cheirado, devolvi-lha com a maior civilidade possível. Foi então buscar ao covil dos Yahoos um pedaço de carne de burro, mas esta fedia tanto que me afastei, repugnado, atirando-a ele ao Yahoo, que a devorou sofregamente. Mostrou-me, em seguida, uma paveia de feno e uma quartela de aveia; mas abanei a cabeça para significar que não eram alimento para mim.

A partir daí, convivendo com os virtuosos Houyhnhnms, Gulliver se acostuma com a sua dieta.

Cabe ressaltar que o vegetarianismo de Swift não é obra do acaso.

Thomas Tryon (1634-1703), um filósofo autodidata e aluno do místico protestante Jakob Boehmen, publicou, em 1691, seu livro, “O Caminho da Saúde”, advogando uma dieta vegetariana. Essa obra era amplamente lido pelos pensadores da época. Ela até mesmo influenciou o jovem Benjamin Franklin (1706-1790) a se tornar um "Tryonista" por algum tempo. A mensagem de Tryon também influenciou o Dr. George Cheyne (1671- 1743), um famoso médico de Londres. Anos de indulgência o deixaram com aproximadamente 250 quilos; assim, ele decidiu seguir a dieta vegetariana descrita por Tryon. O sucesso de Cheyne levou-o a publicar, em 1724, o “Ensaio sobre Saúde e Vida Longeva”, recomendando uma dieta sem carne. O fundador da Igreja Metodista, John Wesley (1703-1791), foi paciente de Cheyne e convertido ao vegetarianismo. Cheyne contava com outros famosos amigos, como o poeta Alexander Pope (1688-1744), o filósofo David Hume (1711-1776) e – aí está! – o escritor Jonathan Swift.

3 comentários:

Daniel Kirjner disse...

Sou fã das viagens de gulliver desde pequeno. Mas seu vegetarianismo tem ressalvas. Uma é a tara que o personagem tem por couro e gordura animal. Gulliver quase não usa tecidos para fazer suas roupas ou improvisar ferramentas, é sempre couro, vísceras e gordura para construir qualquer coisa! Outra coisa que me incomoda é a postura especista e preconceituosa dos Houyhnhnms. Eles tem uma insensibilidade completa em relação às espécies que consideram inferiores. Desprezam e escarram outros seres menos providos intelectualmente, como nós fazemos, se não de maneira pior. O que me incomoda mais é que no final do livro Gulliver volta para a Inglaterra totalmente imbuído da idéia da superioridade, quase ariana, dos cavalos inteligentes. Foge da própria família para ficar horas no estábulo adorando o cavalo e desprezando todos que o cercam. Mas, no mais, divirto-me bastante com as viagens de Gulliver.

Rafael Bán Jacobsen disse...

Apesar dos pesares, no mais das vezes, acho essa atitude de ficar no estábulo, à parte do resto da humanidade e adorando os cavalos, uma atitude assaz inteligente...

Daniel Kirjner disse...

Pode ser....mas não gosto muito do preconceito especista que está por tráz disto.....nem da idéia de estábulo.....abraço!.......