quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A Dualidade da Relação Homem-Animais (Também) na Literatura


Muitas questões básicas têm ecoado nas mentes humanas desde que o primeiro homo sapiens pisou sobre a Terra e, portanto, são temas frequentes na literatura: a inexorabilidade da passagem do tempo, a imprevisibilidade da morte, o enlevo proporcionado pelo enlace amoroso, a veleidade das relações humanas, as injustiças inerentes aos diferentes modelos de organização social, etc. Outro tema recorrente, embora menos visível, é o da relação entre o ser humano e as outras espécies de animais (sim; mesmo que faça todos esforços para se afastar de sua classificação taxonômica, o homem é apenas mais uma das tantas espécies animais que habitam nosso planeta).

O pensamento humano acerca dessa relação é marcado por uma clara dualidade: de um lado, erguem-se as vozes que defendem a utilização dos demais animais pelo homem, de maneira menos ou mais exploratória, mas sempre justificada por uma diferença de status moral entre “nós” e “eles”, sendo, assim, o nosso ato de comê-los plenamente justificado; do outro, aquelas vozes que advogam direitos morais básicos aos animais não-humanos, direitos tais como o direito à vida, à integridade física, à liberdade (e, é claro, uma conseqüência direta da observância de tais direitos seria nossa renúncia à utilização dos demais animais como meios para nossos fins, sejam esses fins quais forem, até mesmo gastronômicos).

Essa dicotomia, que aparece nos mais diferentes contextos, inclusive na literatura, é a rigor, uma herança filosófica helenística.

Vejamos os pensadores que estão de um lado dessa contenda.

No século VI a.C., Pitágoras, filósofo e matemático, já falava sobre respeito animal em sua obra “Do consumo da carne”, pois acreditava na transmigração de almas. Ou seja: de acordo com Pitágoras, os animais não-humanos são seres humanos reencarnados. Por isso, a justiça e a compaixão demonstradas a vacas e porcos são justiça e compaixão demonstradas a seres humanos. O pensamento pitagórico foi seguido também por Sócrates e por seus discípulos, incluindo Platão. Assim, filósofos neo-platonistas vieram também a advogar a dieta vegetariana. Um exemplo é Porfírio (233-306 d.C.), que adota uma postura vegetariana, porém com um embasamento mais moderno em sai obra “Da abstinência”. Ele defende que os animais não-humanos merecem consideração moral devido àquilo que são (criaturas sensíveis e conscientes) e não devido ao que não são (seres humanos aprisionados em corpos de animais). O que mais espanta Porfírio não é que pessoas como ele optem por não comer carne, mas sim que alguém tenha optado por fazê-lo:

Quanto a mim (...) pergunto-me por que acidente e em que estado da alma ou da mente o primeiro homem que o fez tocou o sangue com sua boca e levou os seus lábios à carne de uma criatura morta, aquele que pôs à mesa corpos mortos e fétidos e aventurou-se a chamar de nutrição os pedaços que um pouco antes bramiam e gritavam, moviam-se e viviam. Como puderam seus olhos suportar o massacre de se cortarem gargantas, de se esfolar o couro, de se arrancar um membro de outro membro? Como pôde o seu nariz agüentar o fedor? Como é que a imundície não causou repulsa ao paladar daquele que fez contato com as feridas de outros e sugou fluidos e soros de ferimentos mortais?

Por sua vez, o ensaísta romano Plutarco (56-120 d.C.) escreveu em seu “Do consumo de carne”:

Mas, em prol de algum bocadinho de carne, privamos uma criatura inocente do sol e da luz e daquela porção de vida e tempo que ela veio ao mundo para gozar.

E quem encontramos defendendo, na Antiguidade Clássica, a posição contrária?

Temos, por exemplo, Aristóteles, que escreveu, no século IV a.C., argumentando que os animais estavam distantes dos humanos na Grande Corrente do Ser ou escala natural. Alegando irracionalidade, concluía, assim sendo, que os animais não teriam interesse próprio, existindo apenas para benefício dos seres humanos.

A partir dessas duas linhas de pensamento sobre a relação homem-animal, a linha pitagórica e a linha aristotélica, dividiram-se os pensadores nos séculos seguintes.

No século XVII, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) argumenta que animais não têm almas, logo não pensam e não sentem dor, sendo assim os maus-tratos não eram errados. Contra isso, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) argumenta, no prefácio do seu “Discursos sobre a Desigualdade” (1754), que os seres humanos são animais, embora ninguém “exima-se de intelecto e liberdade”. Entretanto, como animais são seres sensíveis e conscientes, “eles deveriam também participar do direito natural”.

Também Voltaire (1694-1778) respondeu a Descartes no seu Dicionário Filosófico:

Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam! Será porque falo que julgas que tenho sentimento, memória, idéias? Pois bem, calo-me. Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conhecimento. Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias. Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para mostrarem-te suas veias mesentéricas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimentos de que te gabas. Responde-me maquinista, teria a natureza entrosado nesse animal todos os órgãos do sentimento sem objetivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição.

Além de filósofos, Rousseau e Voltaire eram também homens de letras, escritores, na acepção de criadores de obras de articulação e conteúdo estético (isto é, não estritamente argumentativo, lógico e racional, como é o discurso filosófico). Foi a partir deles, então, que surgiram e ganharam força de côro muitas e variadas vozes vegetarianas na literatura.

Conheceremos, de agora em diante, neste blog, algumas delas e o que elas podem nos ensinar, não exatamente através da razão, mas sim através da sensibilidade.

4 comentários:

Daniel Kirjner disse...

Pois que venham os vegetarianos!

Um Abraço!

Pedro Martins disse...

opa!
as traduções do porfirio e do plutarco sao de quem?
abraços!

Pedro Martins disse...

e acho que o primeiro excerto é do plutarco também. é o paragrafo de abertura do tratado.

Angelica Bessa disse...

Querido, você pode me dizer onde encontrou esses livros que citou? Estou fazendo minha monografia sobre o direito dos animais, e preciso desses livros para poder citá-los.
Adorei seu blog. Passeie pelo meu. Beijos